The Water-Lily Pond, por Claude Monet.| Foto: Wikimedia Commons
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Para tratar de algo que durante séculos esteve debaixo da tutela da igreja cristã no que diz respeito ao mundo ocidental, devemos partir de um princípio para iniciarmos uma quebra de paradigma: pensar que as coisas têm valor por aquilo que são, e não pelas funções que exercem – isto vale para toda forma de arte, por mais que estas sejam importantes.

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O papel dos artistas nem sempre foi o que é hoje. Em muitas culturas, incluindo a nossa, antes do novo período que começou entre 1500 e 1800, os artistas eram principalmente artesãos. Fazer arte significava fazer as coisas de acordo com certas regras – as regras da classe dos artesãos, não as da religião. Os artistas eram exímios trabalhadores que sabiam como entalhar uma imagem, construir um baú, fazer um portão de ferro fundido. Eles eram membros de associações de classes, assim como outros trabalhadores habilidosos. Produziam arte a partir do cotidiano sem nenhuma ingerência religiosa.

No Iluminismo, outro movimento ganhou força. A arte tornou-se “belas artes” e as artes manuais foram postas de lado, como algo inferior. O artista tornou-se um gênio, alguém com dons especiais, que poderiam ser usados para dar à humanidade algo de uma importância quase religiosa: a obra de arte. De certa forma, a arte tomou o lugar da religião. Descartes, em sua filosofia, disse que somente as coisas que podia compreender de forma racional, clara e distinta eram reais e importantes. O filósofo Baumgarten, partindo da mesma base iluminista, escreveu Estética. O livro aborda coisas que não são claras e distintas, que precedem o conhecimento e baseiam-se em sentimentos. Coisas estéticas – obras de arte.

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Dessa forma, o mundo ocidental foi fragmentado em duas culturas: as ciências e as artes, realidade que dura até hoje. Aqui vemos o início da história da arte moderna. Muito disso estava atrelado ao mundo de pessoas de bom gosto e conhecimento, e colecionadoras de obras de arte. A arte se tornou desconectada das funções normais da vida, e a beleza passou a ser vista como uma qualidade abstrata, com sentido próprio e sem relação com o que era retratado.

Quase sempre os artistas foram vistos como sumos sacerdotes da cultura – ditando reflexões, valores e até mesmo a moral. Ao mesmo tempo, espera-se dos produtores da arte (seja ela a música, pintura ou escrita) que criem obras de valor quase eterno, relativas a coisas sobre as quais se possa conversar séculos depois. Qualquer discussão sobre arte se precede de uma afirmação muito básica: a arte não precisa de justificativa – nem por motivos religiosos ou propósitos evangelísticos, nem por fins econômicos ou políticos. A arte é livre e transcende a tudo. E, já que a arte não precisa de justificativa, ninguém precisa se desculpar por fazer arte. Os artistas não necessitam de justificativa, da mesma forma que os açougueiros, os jardineiros, os taxistas e tantos outros profissionais não precisam justificar o porquê de estarem fazendo o que fazem.

Existem inúmeras pessoas que buscam na arte um sentido para vida. Essa busca, na verdade, revela uma crise. A arte precisa ter uma mensagem, mas não deve ser didática. Precisa enriquecer a vida. Elevar o espírito. Um poder capaz de nos tirar da miséria humana e apresentar uma beleza sem igual.

Por mais que haja liberdade na arte e suas variadas funções e interações com a vida, e mesmo que não precise se justificar, a arte não é neutra. Ela tem um pano de fundo a partir daquele que a produz e a vivência do seu criador. A arte tornou-se arte pela arte, um tipo de religião irreligiosa em que a religião não tem um papel claramente definido. Isso significa que a arte é algo tão raro e especial que as pessoas precisam de cursos de apreciação artística e palestras para conseguir compreendê-la. Não se pode colocar a arte em um nível superior, que a tire da vida das pessoas, sem que haja envolvimento real com a vida. Por isso, toda arte pode ser julgada e avaliada em seu conteúdo e o entendimento acerca da realidade incorporada nela. Como a arte está amarrada à realidade, há um espaço para falar sobre a verdade na arte. Ela faz jus ao que representa? Ela o faz de maneira positiva? Demonstra a profundidade e a complexidade do que aborda? A arte talvez seja simples, mas deve ser clara, nunca tola ou superficial.

Os grandes artistas do passado estavam cientes de que a vida humana é cheia de caos e sofrimento. Mas eles tinham um remédio para isto: a beleza. A bela obra de arte traz consolação na tristeza e afirmação na alegria. Ela mostra que a vida humana vale a pena. Muitos artistas modernos se esqueceram desta sagrada tarefa. Neste sentido, registra-se seu lado da espiritualidade, que nada mais é que nos elevar para algo maior que nós. Um nível de estética, beleza, moral e transcendência em que não cabe rótulos, somente o estado de admiração. Entrar numa condição desta forma, além de transmitir paz, amplia o olhar da vida. Quando a arte cumpre seu papel, faz com que a pessoa aprenda a olhar para dentro, para ter condições de olhar para fora de si. Pode-se chamar isto de uma das funções da espiritualidade; a arte é uma forma de disciplina da alma.

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Christopher Marques, bacharel e mestre em Teologia e pós-graduado em Ciências da Religião, é fundador do Projeto Repense e autor de “Um novo olhar para a missão da Igreja”, “O que pensa a fé protestante sobre a política, cultura, sustentabilidade, trabalho e dignidade humana” e “Quando a vontade de viver vai embora”.