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Obra: “Julgamento de Pilatos”, autoria de Lara Baruzzo, óleo sobre tela, 208×300 cm, 2022.
Obra: “Julgamento de Pilatos”, autoria de Lara Baruzzo, óleo sobre tela, 208×300 cm, 2022.| Foto: Reprodução

Aquilo que os Evangelhos narraram, Bach interpretou em música e a cinematografia em drama, uma moça de Curitiba com atrevimento juvenil recentemente representou em tinta. O conjunto de quinze telas da artista plástica Lara Baruzzo evoca as passagens da Via Crucis num contexto em que o sofrimento do negro no Brasil se mistura à condenação de Cristo em Israel.

Expulsa das galerias e até mesmos dos templos, onde antes reinava como catequista, a arte figurativa transmite às gerações o conteúdo que nem sempre as palavras conseguem transportar. Assim, na tranquila região de Santa Felicidade, bairro de tradição italiana na capital do Paraná, como um Michelangelo em sua restrição solitária, Lara faz escorregar sobre a tela o seu modo de relatar a história bíblica e a história nacional, mas saltando do meramente representativo para o filosófico.

Expulsa das galerias e até mesmos dos templos, onde antes reinava como catequista, a arte figurativa transmite às gerações o conteúdo que nem sempre as palavras conseguem transportar.

A obra que inaugura o itinerário doloroso do Filho de Deus, “O julgamento de Pilatos”, é especialmente enigmática no elenco porque coloca o protagonista à margem, enquanto o Pôncio ganha a centralidade. De olhos vendados, no delírio de sua resolução, o governador romano que não encontrou motivos suficientes para condenar o réu, cede ao apelo dos chefes do povo judeu. Diante do drama que se instala entre a evidência da inocência e os cumprimentos do dever político, Pilatos se decide pela conveniência mesmo à revelia de sua consciência, não anulada por uma venda tapando a visão.

O ato de lavar as mãos, que sugere uma pretensão de imunização mesmo diante da injustiça, não confere uma isenção com o ato de cooperação com o mal. No entanto, a tensão da mente humana confrontada diante da verdade, objetiva, encarnada, estende-se nos demais personagens que perplexos reagem cada um com um modo incômodo perante a omissão que lhes faz também permitir a condenação injusta. Os efeitos psicológicos da covardia chegam a pasmar na feição dos coadjuvantes.

O ato de lavar as mãos, que sugere uma pretensão de imunização mesmo diante da injustiça, não confere uma isenção com o ato de cooperação com o mal.

Apresentando o lucro de sua traição, Judas – Mercator pessimus, canta uma antífona da liturgia da Sexta-Feira Santa – chora, irrigando sua face com lágrimas fluentes, pois, arrependido de ter trocado o tesouro do mundo por uma mixaria que logo será jogada fora, não suporta o peso massacrante de sua amargura, o que o fez decretar a própria sentença. Aos pés do traidor, onde os pingos de remorso atingem o chão, a própria artista aparece atirada com o ventre por terra e a mão estendida, clamando por misericórdia àquele que não recebeu misericórdia.

Cristo foi vítima de uma trama maldosa que mantêm suas mãos atadas por grilhões, tão frágeis como as teorias encontradas para sua culpa. Diante dele, Lara se inscreve entre os perversos, todavia, rogando por um outro destino, aquele que Deus confere aos arrependidos de coração.

O conflito entre o bem e o mal paralisa a cena. O choque apela para uma reflexão moral: o descompromisso com a justiça é a causa dos desdobramentos sanguinários que irão culminar na cruz de Cristo e reverberar na história da escravidão no Brasil, onde o tráfico negreiro perdurou por mais de três séculos de uma repetida via dolorosa percorrida nas lavouras de cana e de café.

O trabalho genial de Lara Baruzzo é um indutor de uma reflexão sobre a ética, embora à primeira vista queira abordar um tema de religiosidade inculturada no cenário tropical. Tivesse que comparecer diante de um interrogatório atual, cego e sereno como Lara o representou, Pilatos talvez responderia, como aqueles no tribunal de Nuremberg, que apenas cumpriu o seu dever. Apresentaria as mãos limpas, como ilusão de estar livre de um pecado poucas vezes confessado: a omissão perante a injustiça.

Khae Lhucas Ferreira Pereira é doutorando em Filosofia pela UFPR e especialista em Arquitetura e Patrimônio pela UTFPR.

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