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Os gregos acham que estão sendo humilhados. Em realidade, eles estão se portando como o bêbado que atribui a culpa por sua crise de abstinência ao dono do alambique, porque este resolveu cortar o fornecimento de cachaça

Em uma carta enviada a Karolus Magnus (Carlos Magno), Santo Alcuíno de York disse: "Vox populi, vox dei", ou seja, a voz do povo é a voz de Deus. Entre os especialistas de marketing, esse ditado tornou-se famoso e, para muitos, a voz do povo é a voz da verdade e ponto final. Isso pode valer para situações de marketing ou de política, mas dizer que algo é verdadeiro ou racional apenas porque a multidão inflamada o afirma é cientificamente falso.

A democracia, por exemplo, é a voz do povo expressada nas urnas. Nem por isso a democracia é o governo dos melhores. No máximo, é o governo dos mais numerosos. A eleição repetida de pilantras e idiotas está a provar que tudo é uma questão de quantidade de votos, não de méritos. Roberto Campos até ironizava, dizendo que a "parcela substancial da sociedade é composta de idiotas e seria uma injustiça se os idiotas não estivessem representados".

Essa questão ocorreu-me a propósito de duas faixas brandidas pela multidão de gregos que protestavam contra o pacote econômico baixado pelo governo. Uma faixa dizia: "Queremos um governo a favor do cidadão e não do mercado". A outra: "Os cidadãos não aceitam ser humilhados pelo FMI e pela União Europeia".

Na primeira faixa, há uma esquisitice: a separação entre mercado e pessoas. As entidades econômicas de uma nação são três: as pessoas, as empresas e o governo. O mercado é apenas e tão somente os bilhões de transações feitas pelas pessoas, pelas empresas e pelo governo uns com os outros de forma direta ou cruzada. Sem as pessoas, não existe o mercado.

Quanto à segunda faixa, os gregos vêm vivendo acima de suas possibilidades há muito tempo. Trata-se de um povo que consome mais do que produz, como uma família que produz 10 quilos de pizza por dia e come 15, o que só é possível continuar enquanto houver vizinhos dispostos a fornecer cinco quilos de pizza todos os dias, mediante a promessa de que, no futuro, tudo será devolvido com juros. O problema é que os vizinhos começaram a desconfiar de que os gregos jamais vão parar de consumir mais do que produzem e, portanto, não vão pagar suas dívidas.

Alguns dados mostram a insanidade econômica da Grécia. Os funcionários públicos recebem 15 salários anuais e podem se aposentar aos 55 ou 50 anos. Os salários dos servidores públicos são muito maiores do que os salários do setor privado. O quadro de funcionários do governo grego dobrou nos últimos dez anos. Uma ferrovia estatal do país tem receitas de 100 milhões de euros anuais e somente a folha de pessoal é de 400 milhões.

Para calar os sindicatos privados, o governo grego aprovou lei dando aposentadoria aos 50 anos para trabalhadores privados de profissões "árduas". A lei listou 600 tipos de profissões árduas, entre elas, cabeleireiros, médicos, motoristas de táxi. O país não tem registro de imóveis e não sabe quem são os proprietários. Não há controle sobre os ganhos das pessoas e, por isso, não há identificação de quem são os sonegadores de impostos. A Grécia é uma piada econômica, a ponto de o FMI dizer que nenhuma informação financeira do país é verdadeira.

E os gregos acham que estão sendo humilhados. Em realidade, eles estão se portando como o bêbado que atribui a culpa por sua crise de abstinência ao dono do alambique, porque este resolveu cortar o fornecimento de cachaça. Definitivamente, na Grécia, a voz do povo não é a voz de Deus, muito menos a voz da verdade e da razão. É a voz de um povo iludido, que teve suas feridas expostas quando descobriu que, por ter adotado o euro, perdeu o direito de emitir dinheiro para pagar seus déficits.

A crise grega é diferente da crise norte-americana. Nos Estados Unidos, o sistema financeiro jogou sobre os lombos do governo o custo de seus erros. Na Grécia, o governo e a sociedade jogaram sobre o sistema financeiro sua orgia econômica. Nos EUA, os bancos quebraram o país. Na Grécia, o país quebrou os bancos.

A crise grega estourou porque os bancos estrangeiros resolveram que não vão continuar dando dinheiro para o governo seguir gastando mais do que arrecada. Portanto, a grita da multidão na praça de Atenas não é a voz de Deus. Nesse caso, Vox populi, vox dei não é aplicável, a menos que, na Grécia, os deuses tenham enlouquecido e esquecido as mais elementares lições de economia.

José Pio Martins, economista, é reitor da Universidade Positivo.

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