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As universidades e as pandemias: Scientia potentia est

Fachada da sede histórica da UFPR. Imagem ilustrativa. (Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo)

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Pandemias acarretam abalos intensos nas redes sociais e econômicas de milhões de pessoas, suscitando alterações profundas nas sociedades, na cultura e nas instituições. Para a universidade, instituição milenar cujo nascedouro antecede em muito os trabalhos de Edward Jenner e Alexander Flemming, portanto anterior à descoberta da vacina e do antibiótico, a história registra memoráveis ações empreendidas no processo de superação destes flagelos, as quais, reiteradamente, reafirmaram a academia como uma das mais dinâmicas, resilientes e criativas instituições criadas pelo espírito humano.

No século 14, na Universidade de Oxford, a célere resposta institucional frente à peste bubônica permitiu a seus alunos retornarem aos domicílios a fim de se protegerem da epidemia. De fato, mergulhando oito séculos em direção ao remoto passado medieval, registra-se que o isolamento social já vigorava como medida de contenção de doenças contagiosas. A Peste Negra, como ficou conhecida, acarretou impacto significativo na universidade medieval, provocando, em 1350, o encerramento definitivo das atividades de pelos menos cinco das 30 instituições existentes antes da pandemia.

Contudo, em meio aos esforços para combater o avanço da doença, o interesse nas universidades também se intensificou, com registros históricos de pelo menos 15 novas instituições se estabelecendo antes do fim do século 14. Curiosamente, também aumentaram as doações para instituições universitárias, e ocorreu mudança marcante no perfil dos filantropos. Se pessoas doentes em seu leito de morte eram os principais benfeitores anteriormente à peste, pessoas saudáveis passaram a representar significativo montante de doações quando superada a pandemia, caracterizando, assim, alteração consistente na percepção social a respeito da importância das universidades.

Infelizmente, a peste bubônica não findou no século 14, e surtos subsequentes apareceram de maneira randômica, exigindo planejamento institucional para o enfrentamento. No século 15, por exemplo, existem registros de que a Universidade de Oxford contava com “planos de fuga” informais construídos pelos estudantes, talvez uma versão pretérita dos atuais planos de biossegurança, para o caso de novos flagelos pandêmicos.

O último grande surto da peste bubônica na Grã-Bretanha ocorreu entre 1665 e 1666, o qual deflagrou fechamento temporário dos campi universitários. Dentre estes estava a Universidade de Cambridge, então alma mater de um jovem estudante que viria a se sagrar um dos mais prolíficos espíritos científicos de todos os tempos, Sir Isaac Newton. De modo semelhante a seus colegas de instituição, Newton deixou o câmpus de Cambridge e se refugiou no campo, na adorável Woolsthorpe Manor, aguardando melhora das condições sanitárias. Durante este período de quarentena Newton investigou questões de ótica, leis do cálculo, do movimento e da gravidade, posteriormente afirmando que este teria sido um dos períodos mais produtivos de sua vida. De fato, tal interregno passou a ser conhecido como Annus Mirabilis, ou “ano das maravilhas” na carreira do físico, astrônomo e matemático inglês, um dos pais da ciência moderna.

Cento e cinquenta anos mais tarde, já no alvorecer do século 19, a varíola teve consequências tão duras para as universidades quando a peste bubônica, e os fatos acenam, mais uma vez, para a concomitância de desafios e oportunidades nos eventos que nos são dados a enfrentar. A história da varíola está associada à história de uma das principais ferramentas criadas pela humanidade para a luta contra doenças infecciosas: a vacina. Feito extraordinário de Edward Jenner em 1796, o desenvolvimento da imunização induzida foi também uma importante demonstração da validade do conhecimento experimental e observacional, e desencadeou mudanças radicais da epistemologia médica na prática clínica e na educação universitária, bem como das estratégias de saúde pública.

Aproximando-nos da contemporaneidade, chegamos a 1918, quando outro grande desafio sanitário relacionado a doenças infecciosas afligiu o mundo, ceifando a vida de milhões de pessoas: a epidemia de influenza conhecida como gripe espanhola. Mais uma vez, medidas arrojadas foram implementadas. Na Universidade de Stanford, os estudantes contaminados foram rapidamente isolados e o uso de máscaras passou a ser obrigatório, aplicando-se multas àqueles que circulassem sem o acessório. Em outras instituições diferentes medidas foram adotadas, desde a quarentena até aulas ao ar livre. Muitos estudantes atuaram voluntariamente, diretamente na linha de frente, para auxiliar suas comunidades, inclusive nos hospitais. Enfermarias foram criadas no interior dos campi para tratar estudantes enfermos e a exigência de vacinação antes do início das aulas, ou mesmo a vacinação da comunidade estudantil pela própria universidade, consolidou-se como prática frequente.

Emergindo deste sucinto mergulho nos anais da epopeia universitária, chegamos à segunda década do século 21. Para muitos, contexto dantes conhecido apenas pelos livros de História, mas hoje vivido com perplexidade, incertezas, angústias e esperança. Afloram nossas fraquezas e forças, misturadas, nesta experiência do espírito humano frente à imponência da natureza. No crepúsculo do ano de 2019, informações oriundas do Extremo Oriente impactavam o mundo com a notícia de que estaríamos em rota de colisão, em alta velocidade, com uma nova e letal pestilência. De fato, a pandemia de Covid-19, causada pelo novo coronavírus, logo demonstrou capacidade explosiva de disseminação global.

A resposta da comunidade científica foi uma das mais rápidas da história, talvez sem precedentes em situações de surtos desta estirpe. Após os primeiros casos se tornarem oficiais, em dez dias a sequência genética do vírus foi disponibilizada por pesquisadores chineses para quaisquer cientistas no mundo interessados em estudá-la. Na Europa, o vírus portado pelo primeiro paciente diagnosticado foi sequenciado por pesquisadores franceses em apenas cinco dias. Na América Latina, após a confirmação do primeiro caso, cientistas brasileiros sequenciaram o genótipo viral em impressionantes 48 horas, um recorde de tempo conquistado pela parceria entre o Instituto Adolfo Lutz, a Universidade de São Paulo e a Universidade de Oxford.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, 169 projetos de vacinas estão em desenvolvimento, muitas já nas fases de testes em humanos, e grande parte conduzidas por instituições universitárias. Ao redor do globo uma ampla colaboração entre universidades, empresas e instituições globais de saúde pública tem possibilitado acelerar a resposta dos países a esta pandemia. As universidades estão conduzindo e compartilhando pesquisas essenciais a respeito da Covid-19, publicizando dados e coordenando com governos a consolidação de políticas que irão poupar milhares de vidas e acelerar a recuperação econômica.

De modo instigante, governos e sociedade civil têm se interessado mais pelas universidades neste momento de crise sanitária. Subsídios financeiros para atuar no enfrentamento, busca de informações consistentes para subsidiar políticas públicas e uso de serviços prestados pela academia são exemplos dessa atenção renovada. No Brasil, segundo o portal do Ministério da Educação, as ações desenvolvidas pelas instituições federais de ensino superior, as quais incluem produção de álcool, de máscaras, assessoramento às secretarias estaduais e municipais de Saúde, a realização de exames para diagnóstico do coronavírus e a criação de novos testes de detecção, impactaram a vida de quase 25 milhões de pessoas!

A pandemia de Covid-19 passará! A humanidade sairá diferente, com prioridades revisadas. Apreciaremos melhor a excelsa liberdade de ir e vir, o aperto de mão e aquele estimado abraço fraterno do qual privamo-nos. Valorizaremos mais os empreendedores, a saúde pública, a ciência e as universidades. Estas são patrimônio do espírito humano. Instituições perenes que servem a um dos mais sublimes atributos de nossa espécie: o desejo e a capacidade de conhecer. Conhecimento é poder, conforme eternizou Francis Bacon na célebre frase que dá título a este artigo. Aliado à resiliência e criatividade, nos permite transformar desafios em oportunidades. Transformar um annus horribilis em um annus mirabilis.

Gleisson Brito é reitor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).

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