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Ao recordar a figura fraterna e amiga, o sorriso contagiante nos intervalos do trabalho e os tempos de austeridade, me sinto no poema de Carlos Drummond de Andrade: "Do lado esquerdo carrego meus mortos./ Por isso, caminho um pouco de banda".

Era o tempo das eleições municipais de 1962. Campo Mourão vivia intensamente o clima da disputa com a chegada de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976), que recebia a maior louvação política na história da região. O ex-presidente do Brasil (1956-1961) veio apoiar o candidato de seu Partido Social Democrático (PSD) ao cargo de prefeito. Na mesma noite em que o construtor de Brasília discursava em favor do seu correligionário, em outro palanque ressoava o verbo candente e aliciante de um jovem advogado pelo Partido Democrata Cristão (PDC) e que chegara na cidade poucos anos antes: Milton Luiz Pereira. O seu prestígio popular fora construído pelas memoráveis defesas no Tribunal do Júri, aliando a competência jurídica e o entusiasmo pela causa, além da densidade e potência de um tenor dramático ao interpretar a tragédia do cotidiano e o infortúnio do processo. A vitória, com o dobro da votação do concorrente, não foi surpresa para mim, seu colega da turma de 1958 da Faculdade de Direito da UFPR. Naquele mesmo ano participamos em Natal (RN) de um congresso de estudantes de Direito de todo Brasil. O ponto alto do evento foi o concurso nacional de oratória perante uma qualificada banca de cinco mestres. A disputa final entre os candidatos de Pernambuco, da Bahia e do Paraná foi vencida pelo nosso representante com o delírio da imensa plateia de alegres e ruidosos jovens.

A gestão de Milton Luiz Pereira (1963-1967) destacou nacionalmente Campo Mourão, que conquistou, no Rio de Janeiro, o título de Cidade Modelo pelos múltiplos e bem-sucedidos projetos humanos, sociais e econômicos, além da construção de muitas obras físicas. O estilo transparente marcou época ao comparecer, toda semana, na Rádio Colmeia para prestar contas da administração. Ao final do bem-sucedido mandato recebeu da população um Fusca zero quilômetro, presente que conservou por muitos anos e gerou a criação do Clube do Fusca que o homenageou 40 anos depois ao comparecer pessoalmente para o Encontro Mourãoense do Fusca.

Juntamente com Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, Heraldo Vidal Correia e Lício Bley Vieira, ele instalou a Justiça Federal no Paraná (1967). Cumprindo rigorosamente a vocação e os ideais da missão judiciária, Milton adquiriu a titularidade do cargo e a direção do foro de Curitiba e atuou no Tribunal Regional Eleitoral, daqui saindo para integrar o Tribunal Regional Federal de São Paulo, do qual foi seu primeiro presidente (1989-1991). Teve destacada atuação no Superior Tribunal de Justiça e foi coordenador do Conselho da Justiça Federal.

Lamentando a perda física, o ministro Ary Pargendler, presidente do STJ, prestou sensível testemunho: "Uma pessoa exemplar e um juiz admirável"...É como juiz, porém, que o recordo, um juiz à moda antiga, que cumpria seu ofício pessoalmente, de modo artesanal, sem deixar de ser pontual. Tudo isso se deve em grande parte a Dona Mary, que formava com o ministro Milton Luiz Pereira uma união indissolúvel, que a morte parece não ter desfeito, à vista de que partiram juntos. O Superior Tribunal de Justiça cultuará a memória de ambos como personalidades marcantes de sua história.

A longa, afetuosa e fecunda convivência de Milton Luiz Pereira e Rizoleta Mary Pereira e o passamento de ambos, no mesmo hospital e com poucas horas de diferença, revela de quanto é capaz o amor ao contrariar o mandamento bíblico recitado na liturgia do casamento: "Até que a morte os separe".

Ao recordar a figura fraterna e amiga, o sorriso contagiante nos intervalos do trabalho e os tempos de austeridade, competência e ética na judicatura; ao revisitar parte de sua carreira de professor e magistrado, eu me sinto no poema de Carlos Drummond de Andrade: "Do lado esquerdo carrego meus mortos./ Por isso, caminho um pouco de banda".

René Ariel Dotti, advogado, é professor titular de Di­­rei­to Penal e membro da Academia Paranaense de Letras.

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