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O fato de um grupo de rapazes terem espancado brutalmente Sirley Carvalho Pinto trouxe indignação à população. Como é possível? Loucura? Abuso de álcool? Falta de limites? O comportamento é multideterminado. Então, provavelmente, um conjunto de fatores. No sentido médico, não se pode afirmar que esses rapazes sejam portadores de algum tipo de anomalia psíquica ou mesmo que esse comportamento aberrativo tenha sido conseqüência de abuso de álcool ou drogas, a não ser que passem por exames e entrevistas para serem diagnosticados. Sem isso, é prematuro e não-ético falarmos em distúrbios psiquiátricos como elementos determinantes.

Ainda assim, é preciso fazer a pergunta que não quer calar: o que faziam seis marmanjos amontoados dentro de um carro minúsculo varando a madrugada à procura de mulheres solitárias, não em busca de sexo, mas de violência gratuita? Não sabemos se existem ocorrências demonstrando que algum deles tenha cometido tal ato agindo sozinho, mas agiam coletivamente. A defesa patética de que confundiram Sirley com uma prostituta leva-nos a duvidar da capacidade cognitiva dos gabolas. Argumentaram tal qual os famosos grupos de vigilantes, que ficaram conhecidos no Oeste americano, ou os ignóbeis grupos da Ku Klux Klan, que agiam em suposta defesa da moral da sociedade. Tais grupos queriam impor supostos valores morais e foram muito divulgados pela indústria hollywoodiana. Este atual enredo tropical, que mostra total desagregação social e ausência de cidadania, talvez não fosse sequer imaginado por um roteirista de filmes B.

Sirley é uma trabalhadora que esperava o ônibus às 4h50 para conseguir uma consulta médica em posto de saúde. Por si só, o fato denuncia a desigualdade social de nosso país, pois ela deveria dispor da possibilidade de agendar atendimento médico com hora marcada. Os fanfarrões-universitários estavam à procura de vítimas. Consideraram essa atividade como diversão e foram para casa dormir. O que produz atos e objetivos de vida tão diferentes? É fascinante analisar as entrevistas dadas pelos pais.

Pai de Sirley, o pedreiro Renato Carvalho disse: "O que esses rapazes fizeram foi brutal. (...) Criei meus quatro filhos como meu pai me criou, com integridade. O problema é que os jovens de hoje estão muito soltos, sem limites. Por isso, estão tão violentos. Se os pais procurarem saber o que os filhos fazem fora de casa, podem melhorar muito esse caos". O empresário Ludovico Bruno, pai do agressor Rubens, falou: "Eles não são bandidos. Tem que criar outras instâncias para puni-los. Queria dizer à sociedade que nós, pais, não temos culpa nisso. Eles cometeram erro? Cometeram. Mas não vai ser justo manter CRIANÇAS (grifo nosso) que estão na faculdade, estão estudando e trabalham, presas... Prender pessoas que têm estudo, que têm caráter, seria castigo demais". Ele achou a prisão do filho exagerada pois "Sirley é mais frágil por ser mulher, por isso fica roxa com apenas uma encostada". Até Nelson Rodrigues se revirou no túmulo. Se esses marmanjos são doentes, aparentemente os pais também. Entretanto, a única doente oficial é Sirley, cujo infortúnio foi passar por sofrimento ao tentar buscar ajuda médica.

Um dos rapazes confessou não ter participado por estar dormindo no carro, alcoolizado. Podemos supor que ele não bebeu sozinho e, como dizem que estavam em uma rave, podemos desconfiar que tenham feito uso de drogas. Drogas e bebidas podem relaxar a censura moral, mas isso não serve como defesa, pois nem toda pessoa que ingere drogas ou álcool em excesso sai agredindo outras. É preciso ter também falta de integridade moral como base.

Não é possível avaliar famílias por meio de falas em entrevistas, mas pode-se ter uma boa idéia dos diferentes modelos parentais. Pesquisas ressaltam que a família tem enorme influência na socialização dos filhos e pode ser tanto um fator de proteção como de risco. Em uma pesquisa que realizamos, adolescentes responderam, anonimamente, questionários sobre suas condutas e sobre seus pais. Os dados desvelam as interações familiares e suas conseqüências. Não é só a banalizada "falta de limites" que impera nas famílias. É o que se denomina de negligência parental. Os jovens que afirmaram que "freqüentemente" iniciam atos anti-sociais (agredir, usar drogas e álcool, pichar, apedrejar etc.) percebem seus pais com baixos envolvimento e relacionamento afetivo, ausência de comunicação positiva, de regras, de supervisão (os pais não sabem onde eles andam nem quem são seus amigos), alto nível de hostilidade conjugal, comunicação aversiva e punições corporais. Exatamente o oposto revelou-se entre aqueles que nunca tinham praticado atos anti-sociais: família presente, regras, limites, supervisão e monitoria sim, mas também afeto, envolvimento, comunicação positiva e modelo moral.

Os dados das pesquisas levam à reflexão sobre uma frase do filme "O Gladiador", dita pelo imperador Marcus Aurelius para Commodus, seu filho: "seus defeitos como filho são o meu fracasso como pai".

Lidia Weber é professora da UFPR, doutora em Psicologia pela USP e pós-doutoranda em Desenvolvimento Familiar pela UnB. É autora de "Eduque com Carinho" (Ed. Juruá).

Marcus Weber é médico e tem especialização em psiquiatria pela Universidade de São Paulo, câmpus Ribeirão Preto.

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