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Em The Abolition of Man, CS Lewis sugere que a tecnologia funciona como uma isca: os usuários pensam que estão obtendo poder, mas na verdade estão desistindo de sua liberdade. "O que chamamos de poder do Homem é, na realidade, um poder possuído por alguns homens do qual eles podem, ou não, permitir que outros homens lucrem."
Lewis sugere "o avião, o telefone sem fio e o contraceptivo" como exemplos: cada um apresenta a ilusão de poder. Por meio do voo e do telefone, conquista-se a distância; por meio do contraceptivo, impede-se que a natureza siga seu curso.
Todos oferecem uma espécie de "liberdade" das restrições naturais. Mas a pessoa individual não faz nenhuma das coisas prometidas — o poder realmente pertence a quem possui a tecnologia. O pagamento pelo uso da tecnologia permite que o indivíduo aja como se as habilidades adquiridas fossem suas.
Companhias aéreas poderiam proibir indivíduos de viajar; a Verizon, teoricamente, poderia impedir que as pessoas falassem à distância. Empresas farmacêuticas ou seguradoras poderiam limitar o acesso à contracepção — ou, na verdade, a qualquer um de seus produtos.
Essa dinâmica — tecnologia que promete liberdade, mas exige a cessão do controle a quem a detém — aparece em plena evidência na mais recente temporada de Black Mirror, da Netflix.
O episódio de abertura, "Common People", sugere que a tecnologia que leva ao verdadeiro florescimento deve começar pela valorização da pessoa humana.
"Common People" se passa em uma Terra de um futuro próximo e se mostra um exemplo bem executado de ficção científica moderna, com uma história bastante plausível, que oferece uma crítica necessária a um tipo de aplicação tecnológica.
“Common People” foca em uma tecnologia cerebral que salva vidas. Os dois protagonistas, Amanda (interpretada por Rashida Jones) e seu marido, Mike (Chris O'Dowd), formam um casal encantador. Ela é professora primária; ele é soldador. Eles querem filhos, mas ainda não os tiveram. São financeiramente estáveis, mas têm pouca margem de manobra.
Um dia, Amanda desmaia e entra em coma. O prognóstico inicial: um tumor cerebral inoperável. Mas um novo tratamento experimental, Rivermind, pode oferecer esperança. (Atenção: spoilers a seguir.)
Rivermind é o artifício tecnológico que permite à série apresentar o capitalismo predatório em sua pior forma. Rivermind faz uma cópia do cérebro e, em seguida, substitui o tecido tumoral por “tecido receptor sintético” que permite ao “Riverminder” retomar a vida normal com parte de sua personalidade transmitida pelas torres do Riverminder.
Esse tratamento que salva vidas custa inicialmente US$ 300 por mês (sim, é um serviço de assinatura, semelhante ao próprio Netflix). Ao longo do ano seguinte, Amanda consegue retomar sua vida. Mas as coisas começam a mudar.
De repente, as conversas de Amanda se enchem de anúncios do cereal “Honey Nugs”, marcas específicas de café e até mesmo de um “serviço de aconselhamento baseado na fé”, quando um de seus alunos compartilha sobre o divórcio dos pais.
Além disso, Rivermind informa a Amanda que ela agora está no Rivermind Common, um nível que usa seu cérebro para processamento enquanto ela dorme e exibe anúncios contextualizados. Para ficar sem anúncios, ela precisa fazer um upgrade para o Rivermind Plus, por um adicional de US$ 500 por mês (totalizando agora US$ 800 por mês).
É nesse momento da história que a falta de controle de Amanda se torna evidente: ela não consegue controlar sua fala, seu ciclo de sono ou sua capacidade profissional de ensinar crianças.
Na tentativa de aumentar a renda para pagar as contas do Rivermind, Mike começa a realizar atos extremos no Dum Dummies, um site onde é possível transmitir ao vivo acrobacias absurdas (como beber a própria urina) e receber pagamentos dos espectadores. Eventualmente, ele perde o emprego quando seu canal é descoberto pelos colegas de trabalho.
Sem Mike nem Amanda empregados, eles não conseguem pagar as mensalidades do Riverside+, e Amanda se torna um anúncio ambulante que dorme 16 horas por dia, exceto nos meses em que Mike consegue trabalhos extras suficientes para pagar o Riverside+. Por fim, eles decidem que a vida de Amanda não vale a pena ser preservada, e Mike a mata com um travesseiro.
“Common People” é uma tragédia, e parte do que a torna tão identificável é a força de Mike como marido. Ele é uma figura positiva que busca cuidar da esposa.
Cada passo ao longo do caminho é razoável: é claro que ele deveria tentar o tratamento experimental quando a alternativa é a morte. É claro que ele deveria tentar ganhar dinheiro extra na internet para comprar uma experiência melhor para sua esposa.
Mas, ao final da história, o espectador fica convencido de que Rivermind é construído sobre o sofrimento e o poder de processamento de pessoas comuns. Não é uma crítica ao capitalismo em si, mas sim aponta para a possibilidade de escravidão tecnológica.
Na lógica da história, Amanda deveria ter morrido logo após o coma. O poder da Rivermind reside em prolongar a vida, mas, ao fazê-lo, ofereceram-lhe um produto que ela jamais poderia deixar de usar. E é aqui que reside a possibilidade da tecnologia moderna.
A natureza mantém certas barreiras, o estudo científico permite a compreensão precisa dessas barreiras e as empresas oferecem a possibilidade de transcendê-las mediante o pagamento de um preço. Essa perspectiva é, até certo ponto, a visão moderna da realidade.
Aqui, a percepção de C.S. Lewis é dramatizada: os indivíduos não obtêm liberdade nessa troca. Na verdade, elas entregam sua liberdade e ficam na mão de quem controla o poder. E isso traz ainda mais problemas.
Em O Sobrinho do Mago, Lewis aborda a mesma questão. A mãe de Digory Kirke está morrendo durante a maior parte do livro, e Digory sempre tem a restauração da saúde dela no fundo de sua mente. Ele ouve tia Lettie discutindo uma mística "Maçã da Juventude" e se pergunta se ele poderia encontrar tal cura.
Uma vez que ele está em Nárnia, Aslan o envia em uma curta jornada para recuperar uma maçã que protegerá Nárnia da Feiticeira Branca; quando ele chega ao jardim, Digory percebe que esta maçã poderia curar sua mãe. A Bruxa aproveita o momento e o tenta a roubar a maçã e voltar para casa. Ele não faz isso.
Quando ele retorna, Aslan diz a Digory o que teria acontecido: "Entenda, então, que isso a teria curado, mas não para sua alegria ou a dela. Teria chegado o dia em que você e ela teriam olhado para trás e dito que teria sido melhor morrer naquela doença."
Resolver problemas da existência humana não é suficiente; tais problemas devem ser resolvidos da maneira certa, no momento certo e na medida certa. Há uma arte (ars) para tal solução, em vez de uma mera técnica (techne).
Promessas tecnológicas como Rivermind atendem a uma necessidade sentida, mas o fazem de uma forma que traz dor, sofrimento e escravidão. Aslan não deixa Digory na miséria: “Isso é o que teria acontecido, criança, com uma maçã roubada. Não é o que acontecerá agora. O que eu te dou agora trará alegria. Não dará, em seu mundo, vida infinita, mas irá curar. Vá. Colha uma maçã da Árvore para ela.”
Em contraste com a natureza transacional de Rivermind, a maçã de Aslan é puro presente. Não há amarras, nem taxas ocultas, nem estrutura burocrática. E o presente traz cura.
A ficção científica tem a tarefa única de envolver a imaginação e considerar como a vida humana poderia mudar diante de diferentes tecnologias. Mas o gênero só tem sucesso quando duas condições são atendidas. Primeiro, o mundo deve ser crível como uma realidade secundária; segundo, a consideração da natureza humana deve refletir a realidade.
“Common People” atende a ambas as condições. Esse mundo de futuro próximo se passa em uma cidade relativamente pequena, com pessoas buscando vidas reconhecíveis e carreiras típicas — em resumo, os protagonistas são retratados de forma realista e respondem a pressões que quase qualquer pessoa poderia enfrentar na vida real. Esse cenário convida o espectador a considerar a plausibilidade do desafio tecnológico.
Além disso, a história se baseia em uma sólida compreensão da natureza humana. Trata-se tanto de um casamento quanto de tecnologia. Um marido que ama a esposa, um casal que deseja ter filhos e uma esposa com uma condição cerebral inesperada e com risco de vida — essas coisas poderiam plausivelmente acontecer com qualquer espectador, e por isso o drama ressoa.
"Common People" pede aos espectadores que ponderem as potenciais compensações de uma nova tecnologia. Talvez uma nova startup alegue superar a natureza, para solucionar alguma necessidade sentida diretamente. Nesse caso, é preciso perguntar: a que custo? É uma pergunta que todos nós faremos com mais frequência a cada dia.
Dr. Josh Herring é professor de educação clássica e humanidades no Thales College em Wake Forest, Carolina do Norte-EUA, onde ministra cursos de artes liberais e dirige o programa de Certificado em Filosofia da Educação Clássica.
©2025 Acton Institute. Publicado com permissão. Original em inglês: The Perennial Temptation: To Be as Gods



