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Multidão acompanha a catedral de Notre-Dame em chamas.
Multidão acompanha a catedral de Notre-Dame em chamas. Foto: Philippe Lopez/AFP| Foto: AFP

No início desta Semana Santa, quando os cristãos ao redor do mundo se preparam para mergulhar na celebração do mistério da Paixão e Ressurreição de Cristo, fomos surpreendidos pelas notícias, fotos e vídeos das chamas que consumiam uma de suas maiores pérolas arquitetônicas europeias. É claro que todos nós gostaríamos que a majestosa Catedral de Nossa Senhora de Paris, joia do cristianismo no Velho Continente desde os tempos medievais, tivesse sobrevivido em todo o seu esplendor. No país ao qual a tradição oral atribui ter sido evangelizado por ninguém menos que a grande mulher e santa Maria de Magdala, discípula de Jesus, testemunha da Ressurreição, apóstola dos apóstolos, o coração eclesial pulsante certamente encontrou durante séculos um lugar litúrgico especial, cuja construção requereu monumentais esforços humanos para espelhar tanto quanto possível, sempre imperfeitamente, a glória do Incriado.

Porém, não há como não se emocionar com os fiéis cantando, em frente às labaredas que consumiam o edifício: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo”. Fazendo memória da graça especial recebida pela Mãe de Deus, que ofertou o próprio corpo-espírito para gerar Aquele que tudo cria, a Igreja olha para sua querida igreja como alguém que se despede de sua própria imagem refletida em um espelho embaçado (cf. 1Cor 13,12). Para São Paulo, os cristãos dão glória a Deus em seu próprio corpo, referido por ele como templo do Espírito Santo (cf. 1Cor 6,19-20). No Evangelho de João, por sua vez, Jesus diz à mulher samaritana que a verdadeira adoração ao Pai se faz em espírito e verdade (cf. Jo 4, 23). O Corpo-Espírito de Cristo, construído de pedras vivas e edificadas como casa espiritual (cf. 1Pd 2,5) testemunha as labaredas e lamenta a quebra de seu reflexo, agora estilhaçado, que já não reflete a beleza de outrora.

Não há como não se emocionar com os fiéis cantando, em frente às labaredas que consumiam o edifício

Em meio ao espanto, dor e sofrimento, o canto na noite escura faz lembrar o itinerário espiritual nos versos do místico-poeta espanhol São João da Cruz, o qual narra o amor da alma “em vivas ânsias inflamada” (Noite escura, n. 1), que sai pela escuridão “pela secreta escada, disfarçada” (n. 2). Eles dão expressão a uma experiência interior cujo testemunho parece estar em ressonância com a fé, a esperança e o amor manifestados pelo corpo eclesial que, não obstante habitar o país vizinho quase meio milênio depois, também poderia dizer que se encontrava “sem outra luz nem guia / além da que no coração me ardia” (n. 3), abrindo espaço para a mesma confiança iluminar seu caminho: “Essa luz me guiava, / Com mais clareza que a do meio-dia” (n. 4).

Com efeito, na própria tradição bíblica, o fogo nem sempre é apresentado como veículo de destruição, como foi o caso nesta recente tragédia francesa, mas também como elemento de purificação. O próprio Deus é apresentado como um fogo que consome (cf. Dt 4,24), um fogo devorador (cf. Hb 12,29). O Evangelho de Lucas ratifica a valorização da imagem do fogo, apresentando Jesus de um modo que pode lembrar ligeiramente, àqueles mais afeitos ao mundo helênico (com quem a tradição lucana se encontra em diálogo), a bravura prometeica da narrativa segundo a qual o personagem da mitologia grega traz o fogo dos céus para doá-lo aos homens. O Nazareno é mostrado como aquele que veio incendiar o mundo humano: “Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49).

Opinião da Gazeta: Notre-Dame de Paris: a História em chamas (editorial de 16 de abril de 2019)

Leia também: O incêndio de Notre-Dame e a crise identitária da Europa (artigo de Igor Guedes, publicado em 16 de abril de 2019)

Guardadas as devidas proporções, sua Palavra abrasadora parece convocar e desafiar tanto os antigos israelitas quanto os nossos contemporâneos parisienses a não se lamentarem por muito tempo diante da perda das belas imagens refletidas, que podem ser destruídas pelo fogo. Ver os fiéis cantando do lado de fora nos emociona profundamente, pois nos faz testemunhar ao vivo e a cores algo que recorda a experiência originante do Antigo Testamento, a Primeira Aliança narrada na Bíblia Hebraica. Quando Israel perdeu seu templo, seu reino e suas posses, a fé iniciou um novo movimento dentro do povo, e tanto a escravidão quanto a libertação do Egito e da Babilônia obrigaram-no a questionar sua vida à luz do Criador.

Belo é o templo, sem dúvida, porém belíssimo é testemunhar a fé que movimentou aqueles homens e mulheres a saírem às ruas e, encarando as labaredas de frente, cantarem ao Deus-Mistério na escura noite estrelada.

Bruno Albuquerque é psicólogo (IP-UERJ), doutorando em Ciência da Religião (PPCIR-UFJF), mestre em Psicanálise (PGPSA-UERJ).

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