• Carregando...

Há um século, libertamos os escravos sem fazer a reforma agrária e sem considerar que isso forçaria migrações em direção às cidades. Desde os anos 30, iniciamos o salto para a industrialização, aumentando a migração. E submetemos nossos projetos de infraestrutura urbana à voracidade de um modelo de desenvolvimento perdulário e concentrador.

Pior, para não mudarmos o modelo de desenvolvimento e o imediatismo que norteiam nossas decisões, vamos dando "jeitinhos", como se as chuvas nunca viessem em densidades infernais, nem previsíveis no longo prazo. Usamos políticas públicas que solucionam apenas os problemas de uma parte pequena e privilegiada da sociedade.

A natureza é paciente, mas não tolera "jeitinhos".

A consequência é que as cidades estão pagando pelos erros e omissões do passado. Atraímos migrações e investimos recursos para viabilizar a indústria automobilística, e não para dar segurança aos moradores. Em vez de urbanizar os morros, blindamos os caminhos por onde a água vazaria. Nossas cidades são levantadas sobre o alicerce dos "jeitinhos" e por governos sem visão. Prisioneiros do imediato, ignoramos o futuro.

Resolvemos o problema de cada pedaço de asfalto, desconsiderando o fato de que assim, um dia, todo o território nacional estará asfaltado; deixamos a pobreza expulsar o brasileiro do campo, sem considerar que, um dia, as cidades estarão superpovoadas; toleramos construções em ladeiras vulneráveis, sem pensar que um dia uma forte chuva, sem ter para onde escorrer, arrastará mulheres e crianças, soterrando-as. O Brasil construiu suas cidades como se o volume de chuva jamais fosse acontecer com a densidade que só ocorre raramente – mas que acontece.

Não podemos jogar a culpa somente nos atuais governantes, nem nos governantes locais, nem mesmo em todos os governantes. A culpa é da nossa cultura de preferência pelo imediato e de pavor à prevenção. A culpa não está nos céus. A chuva não escolheu o Rio. Foi o Brasil que escolheu o caminho da não prevenção. Fizemos a opção pelo imediatismo, pela concentração, pela industrialização rápida, pela urbanização apressada, com infraestrutura incompleta.

A tragédia vem da "chuvomissão". As chuvas aumentam de volume, os governantes escolhem investimentos que não levam em conta o longo prazo; a omissão fecha os olhos, os ambientalistas não são ouvidos; o resultado é a tragédia.

Esse é um problema que nenhum governante vai resolver se o Brasil continuar com a prática do jeitinho suicida: os baixos salários são compensados com baixa exigência, com aposentadorias precoces, vale-transporte, vale-refeição; a pobreza é compensada com bolsas assistenciais; a falta de habitação, com a tolerância com a ocupação irregular do solo; a falta de estadistas para mudar o futuro do país, com políticos geniais no convencimento de que tudo vai bem.

Certamente, governadores e prefeitos precisam fazer seus deveres de casa, mas nenhum conseguirá resolver os problemas de sua região se o Brasil continuar desprezando o futuro. Comemorando o aumento do número de carros, vias asfaltadas e viadutos construídos, em vez de implantar um novo modelo de desenvolvimento que incentive a moradia, a ocupação regular do solo, o respeito ecológico.

Enquanto isso não for feito, a chuva e a omissão continuarão a provocar tragédias cíclicas, gritantes e visíveis, ao lado de outras, permanentes, mas que nos negamos a ver: na saúde, na pobreza, na educação, na migração por necessidade de sobreviver. Essas, sim, as verdadeiras causas.

Cristovam Buarque, professor da Universidade de Brasília, é senador pelo PDT/DF

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]