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Seguir a ciência?
| Foto: Albari Rosa / Foto Digital/Gazeta do Povo

Muitas pessoas inteligentes julgam necessário “seguir a ciência” em questões políticas. Elas não percebem que, em primeiro lugar, não existe “a ciência”: não há uma instituição ou um grupo de indivíduos que tenha a prerrogativa de falar em nome de todos os pesquisadores do mundo. Ademais, cada campo científico tem seus próprios objetos e métodos. Além disso, dentro de cada campo científico há uma pluralidade de posições. Isto é: quem afirma falar “em nome da ciência” ou é filosoficamente inculto e tem uma perspectiva infantil do processo de criação do conhecimento científico; ou é charlatão e usa da má-fé, fingindo fundamentar as suas posições numa autoridade que, a rigor, não existe.

Em segundo lugar, as pesquisas científicas jamais dão respostas acabadas e definitivas sobre qualquer problema. A tarefa do cientista não é a de estabelecer verdades; é, em lugar disso, perguntar, questionar, duvidar, nunca se satisfazer com o que todos concordam. É por isso que o cientista não atribui às suas conclusões o estatuto de “verdade”: as conclusões dos trabalhos científicos consistem na criação de hipóteses, na sua corroboração e na sua refutação. Uma hipótese não é uma verdade, mas uma tese aberta que pode ser progressivamente ampliada, restringida ou abandonada.

Em terceiro lugar, pela própria natureza da pesquisa científica, os cientistas erram. Erram muito. Da indicação da talidomida a mulheres grávidas aos erros médicos cometidos diariamente nos hospitais (que constituem, a propósito, a terceira maior causa de morte nos EUA), passando pela gigantesca e diariamente aumentada lista de fraudes comprovadas (basta fazer uma busca simples na internet para ter noção da sua extensão), equívocos e mentiras são tão frequentes na história da ciência que um ex-diretor do prestigiado jornal médico British Medical Journal recentemente sugeriu que todas as pesquisas na área de saúde sejam consideradas fraudulentas até prova em contrário. Especialistas, em todos os campos, enganam-se e enganam o tempo todo.

A tarefa do cientista não é a de estabelecer verdades; é, em lugar disso, perguntar, questionar, duvidar, nunca se satisfazer com o que todos concordam

Em quarto lugar, nenhuma pesquisa científica pode fornecer respostas inequívocas para problemas políticos. Os cientistas de orientação positivista creem que a ciência busca “descrever os fenômenos”; os cientistas mais metafísicos crêem que a ciência busca “explicá-los”. Ambas as perspectivas estabelecem como propósito das ciências a compreensão do mundo. Mas não há ciência particular que permita estabelecer o melhor curso de ação política numa sociedade, pelo simples fato de que uma certa concepção política já está implícita no próprio trabalho dos cientistas. Efetivamente, a utilização de conclusões de pesquisas científicas como critério para a definição de uma política produz um erro lógico – uma petição de princípio. Ao utilizarmos o trabalho de um grupo de cientistas para orientar uma ação na sociedade, com toda a probabilidade a política que daí derivará será próxima à da ideologia por eles abraçada. Afinal, nenhuma pesquisa científica é imune aos interesses político-econômicos: os cientistas são sempre ideologicamente comprometidos, mesmo – e especialmente! – quando não o percebem.

Alguém poderá objetar que “a ciência é definida pela sua metodologia; se há algo como a metodologia científica, então a ciência evidentemente existe”. O problema é que uma das premissas dessa afirmação, a de que “há uma metodologia científica”, é falha. “Ah, e a revisão entre pares? Não é uma metodologia científica?” Não; é uma metodologia acadêmica. De fato, boa parte da ciência é realizada de modo privado ou secreto, sem o compartilhamento de informações, sem qualquer publicação, sem revisão entre pares; conquanto ciência e academia possuam inúmeras interseções, permanecem como dois campos diferentes no mundo humano. Em suma: a suposição da existência de uma “metodologia científica” geral é ingênua. Como diz Paul Feyerabend em A ciência em uma sociedade livre,

“não existe nenhum ‘método científico’; não há nenhum procedimento único, ou conjunto de regras, que esteja presente em todas as pesquisas e garanta que elas sejam ‘científicas’ e, portanto, confiáveis. Cada projeto, cada teoria, cada procedimento precisa ser avaliado por seus próprios métodos e pelos padrões adaptados aos processos com os quais lida. A ideia de um método universal e estável que seja uma medida imutável de adequação e até a ideia de uma racionalidade universal e estável é tão irreal quanto a ideia de um instrumento de medida universal e estável que meça qualquer magnitude, não importa as circunstâncias. Os cientistas revisam seus padrões, seus procedimentos, seus critérios de racionalidade à medida que vão seguindo adiante e entrando em novas áreas de pesquisa (...); não há uma única regra, por mais plausível e por mais firmemente baseada na Lógica e na Filosofia geral, que não seja infringida em um momento ou outro.”

A sociedade democrática não deve “seguir a ciência”; deve, em lugar disso, escutar os cientistas – de inúmeros campos científicos e de variadas orientações ideológicas. Deve, inclusive, escutar os pesquisadores e praticantes daquilo que a própria ciência considera não científico, como a medicina indígena e a psicanálise. Após todos os grupos interessados participarem da discussão pública, as decisões políticas devem caber a quem de direito: aos cidadãos, a todos os cidadãos.

Tudo somado, toda palavra de ordem – na mídia, na popularização científica, na política – que exige que “sigamos a ciência” não passa de ignorância e de preconceito tomados como sinal de inteligência e lucidez.

Gustavo Bertoche é doutor em Filosofia.

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