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"Deixa rolar" seria a versão livre e informal do mais conhecido axioma em língua francesa. Laissez faire, laissez aller, laissez passer ("deixai fazer, deixai andar, deixai passar"), estandarte da escola fisiocrata francesa, de autoria ainda não estabelecida, teria sido enunciado pela primeira vez pelo Marquês de Argenson em 1751 e, ao longo dos 257 anos seguintes, sucessivamente seqüestrado pelo liberalismo inglês, pelo capitalismo americano e pelos cruzados da globalização.

O laissez faire venceu todos os confrontos com todos os dirigismos – do nacional-socialismo ao comunismo, inclusive com o socialismo democrático. Imbatível, audacioso, acabou convertido em sinônimo de dissipação e irresponsabilidade, dogma incontestável, autoritário e prepotente. O resultado está estampado nas manchetes onde a palavra pânico, de tão repetida, parece surrada, desprovida de dramaticidade.

Capricho dos fados, ironia do destino: para salvar o libertário e libertino laissez faire e evitar o apocalipse, recorreu-se a um simplíssimo recurso tecnológico – o circuit breaker, a intervenção reguladora, anônima e impessoal, comandada pelo sistema de computação das bolsas de valores.

Para interromper os surtos de irracionalidade bursátil em qualquer direção – na direção do abismo ou da estratosfera – tal como um termostato que desliga automaticamente ante a ameaça de aquecimento, este freio arrumador é uma varinha de condão: impõe comedimento, força a sensatez. Não é uma intervenção de governos ou Estados, mas ação auto-reguladora, válvula de segurança do próprio mercado.

Assim como as bolsas do mundo inteiro adotam feriados particulares, um circuit breaker globalizado, razoavelmente estendido, seria capaz de interromper o atual desvario e desespero com uma siesta reparadora enquanto governos e bancos centrais descobrem os sedativos apropriados para acalmar a paranóia do laissez faire.

Uma coisa está clara: precisamos de um Contrato Social globalizado. Rousseau ofereceu o dele alguns anos depois dos primeiros triunfos do liberalismo. E este contrato não deve restringir-se à esfera econômica. Os países petro-dependentes, sobretudo aqueles que montaram mirabolantes projetos de poder à custa do barril de petróleo perto dos 150 dólares, estão desesperados, não se conformam com a abrupta queda para 80.

Não é casual, a súbita impertinência do presidente Rafael Corrêa desafiando ostensivamente legítimos interesses de empresas brasileiras no Equador (inclusive a Petrobras). Os desmandos originam-se claramente nas frustrações de Hugo Chávez que, em poucas semanas, viu desmantelarem-se os seus sonhos de hegemonia continental enquanto é forçado a encarar o descalabro social que impôs ao seu país.

Um circuit breaker devidamente adaptado e ampliado para fazer face ao nível de tensão do momento serviria para arrefecer a volatilidade das bolsas e diminuir o estresse político subitamente acionado pelas ameaças de recessão mundial.

A aparente bonomia do laissez faire descambou em impunidade e arrogância. E esta arrogância está contaminando tudo a sua volta. Inclusive nestas bandas. Quando, em 2004, José Serra venceu Marta Suplicy na disputa pela prefeitura paulistana, o presidente Lula não desesperou. Agora, quando Gilberto Kassab, o vice de Serra, ameaça vencer Marta Suplicy, o presidente Lula não esconde a sua frustração. A sua formidável popularidade, em grande parte amparada na invejável situação da economia, está ameaçada pelos atuais fantasmas internacionais. Se não forem exorcizados rapidamente podem colocar em risco a possibilidade de eleger um sucessor (ou sucessora) em 2010.

Algum circuit breaker precisa ser acionado. Deixar rolar, laissez faire, é no momento a opção mais endiabrada.

Alberto Dines é jornalista.

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