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Como a disputa sobre o IOF acirra tensão entre os Três Poderes

Disputa entre Executivo e Congresso sobre IOF expõe conflito de competências e reacende debate sobre os limites do poder regulamentar. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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O objetivo do presente artigo é analisar do ponto de vista jurídico, a controvérsia entre a (in)constitucionalidade do decreto do Poder Executivo que aumentou as alíquotas do IOF e a (in)constitucionalidade do Decreto Legislativo promulgado pelo Congresso Nacional, que sustou aquele ato normativo.

Em razão da natureza do decreto que aumentou o IOF, o debate remeterá, inevitavelmente, a uma abordagem macroeconômica e política, cujas variáveis são inerentes ao tema em exame.

As questões a serem apresentadas demandam, portanto, uma compreensão das finalidades de um Decreto Legislativo e um decreto do Poder Executivo.

Após essas considerações preliminares, inaugura-se, respectivamente, a análise de (in)constitucionalidade formal e material (de mérito) de ambos os decretos.

O Decreto Legislativo é uma espécie normativa prevista no Inciso VI do artigo 59 da Constituição Federal de 1988. Trata-se de um decreto com força de lei, destinado a regular as matérias de competência exclusiva do Poder Legislativo, conforme prevê o artigo 49 da Carta Magna, sem a necessidade de sanção do Presidente da República, de acordo com o disposto no caput do artigo 48 daquela Carta.

Constitui ato normativo primário (equiparado à lei ordinária), cujo procedimento é disciplinado pelo Regimento Interno de ambas as Casas Legislativas que compõem o Poder Legislativo (Congresso Nacional).

O Decreto Legislativo tem a finalidade constitucional e regimental de “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”, conforme disposto no Inciso V do artigo 49 da Carta Magna.

Por sua vez, o decreto regulamentar do Poder Executivo não goza da mesma hierarquia do Decreto Legislativo, ou seja, não detém o status de lei. Trata-se de um ato normativo do Poder Executivo que dispõe sobre matéria de sua competência constitucional prevista no caput e Inciso IV do artigo 84 da Carta Magna.

A sua finalidade é a aplicação direta de alterações das alíquotas de determinados impostos e a regulamentação de lei já existente, visando a sua eficácia e efetividade. Por consequência, o decreto regulamentar não pode extrapolar as condições e limites fixados em lei, sob risco de “inovar”, ou seja, legislar no lugar do Poder Legislativo e ser declarado inconstitucional.

Nesse contexto, o Congresso Nacional aprovou o Decreto Legislativo que derrubou a majoração do IOF em decreto expedido pelo Poder Executivo. O decreto presidencial alterou as alíquotas do IOF – Imposto sobre Operações Financeiras com o objetivo de arrecadar recursos para cobrir déficits do orçamento público.

O Poder Legislativo considerou que o aumento das alíquotas teria extrapolado as condições e limites fixados em lei (Lei 8.894/1994), a partir do momento em que os agentes econômicos (empresas e consumidores) seriam impactados negativamente do ponto de vista de seu poder de investimento e consumo, respectivamente.

Para além daquela constatação, arguiu que o IOF tem natureza regulatória e não arrecadatória, considerando aquela medida como um “desvio da função ou de finalidade” daquele imposto e, portanto, sujeito à sustação por meio de Decreto Legislativo.

Do ponto de vista constitucional, o Congresso Nacional pode aprovar um Decreto Legislativo para derrubar um decreto do Poder Executivo, desde que exorbite do seu poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa

Diante do exposto é possível passar para análise da (in)constitucionalidade do Decreto Legislativo promulgado pelo Congresso Nacional e a (in)constitucionalidade do decreto do Poder Executivo.

O Decreto Legislativo é um instrumento de controle político no âmbito do Poder Legislativo. Trata-se de um controle repressivo de constitucionalidade de atos normativos do Poder Executivo.

Em outras palavras: além da função típica de “legislar” do Poder Legislativo, ele também exerce a função “atípica” de “fiscalizar” os atos normativos do Poder Executivo. Essa atuação remete à à vontade do legislador constituinte “originário” (que promulgou a Constituição Federal de 1988).

O objetivo era garantir a efetividade da principal ferramenta de um Estado Democrático de Direito: o sistema de freios e contrapesos (checksand balances) a ser praticado pelos três Poderes Públicos (Legislativo, Executivo e Judiciário) no sentido de impedir a usurpação de suas respectivas competências constitucionais por meio de um controle mútuo de atos de suas autoridades.

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No presente caso, a promulgação do Decreto Legislativo que sustou o ato normativo do Poder Executivo teve como pressuposto, o fato de que o decreto expedido teria exorbitado de seu poder regulamentar, alterando alíquotas de forma prejudicial, além de utilizar um imposto com “desvio de finalidade”, o que configuraria uma “inovação” além das disposições legais existentes sobre o tema.

Do ponto de vista formal, o Poder Executivo teria “legislado”, no lugar do Poder Legislativo, usurpando a sua competência e afrontando o Princípio da Separação dos Poderes previsto no artigo 2º e Inciso III do § 4º do artigo 60 da Carta Magna. É oportuno observar que sustar atos normativos do Poder Executivo é uma das competências “exclusivas” do Poder Legislativo previstas no seu artigo 49.

A despeito da competência “privativa” do Presidente da República de expedir decretos regulamentares (prevista no Inciso IV do artigo 84), o Poder Legislativo pode e deve fiscalizar os atos normativos daquele Poder.

Após a derrubada do decreto do Poder Executivo, o presidente da República optou por ajuizar uma ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade (para requerer a declaração de constitucionalidade do referido decreto) culminada com uma ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade para contestar a constitucionalidade do decreto legislativo do Congresso Nacional junto ao STF.

Os fundamentos centrais daquela ADC remetem às previsões doartigo 2º e Inciso III do § 4 do artigo 60, alegando que o Poder Legislativo teria usurpado da sua competência ao promulgar o Decreto Legislativo, afrontando o Princípio da Separação dos Poderes.

Da mesma forma, defende que exerceu a sua competência privativa para expedir decretos, assim como, para alterar alíquotas do IOF, de acordo com o caput e Inciso IV do artigo 84 e o caput, Inciso V e § 1º do artigo 153 da Carta Magna.

O caput do artigo 153 prevê a competência da União para instituir impostos sobre: “V – operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários”.

Por sua vez, o § 1º do artigo 153 dispõe: “é facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V (o IOF está previsto no Inciso V do presente artigo). Argumenta que a arrecadação do IOF seria para regular a economia e não teria mero efeito arrecadatório.

Na mesma direção, insiste que todo o imposto tem finalidade fiscal (de arrecadação), independentemente de ser um imposto regulatório, defendendo a tese de que não existe um imposto “puro”. Finaliza afirmando que o Decreto Legislativo não pode adentrar ao mérito do decreto executivo e sim, apenas fiscalizar se o decreto não exorbitou do poder regulamentar.

Conforme se pode depreender, a questão remete a alguns questionamentos para a verificação da constitucionalidade de ambos os decretos (do Poder Executivo e Legislativo). Mas o decreto presidencial exorbitou do seu poder regulamentar ao majorar as alíquotas do IOF?

Partindo do pressuposto de que aquela majoração extrapolou as condições e limites fixados em lei, é possível afirmar que sim, que houve abuso de poder regulamentar, configurando um ato normativo contra legem (contra a lei), permitindo, pois, a sua sustação pelo Congresso Nacional.

É oportuno lembrar que o decreto do Poder Executivo serve em matéria tributária, como instrumento normativo de aplicação direta para a alteração de alíquotas de certos tributos, bem como para regulamentar a fiel execução de lei tributária.

A alteração de alíquotas do IOF está prevista no § 1º do artigo 153 da Carta Magna, o que excepciona aquele imposto de atender ao princípio constitucional da Legalidade e da Anterioridade, desde que aquela alteração se dê nas condições e limites estabelecidos em lei.

O Princípio da Legalidade impõe, em regra, a criação de lei para a instituição e alteração de alíquotas dos impostos em geral, à exceção daqueles que estão previstos nos Incisos do § 1º do artigo 153 da Carta Magna (entre eles, o IOF), por serem de natureza regulatória e não arrecadatória.

Tendo como pano de fundo o Princípio da Legalidade, o Princípio da Anterioridade exige que a criação de um novo imposto ou a sua alteração só pode incidir sobre o contribuinte no exercício seguinte ao da sua instituição. Dessa forma, não há óbice para a alteração de alíquotas do IOF desde que respeitem aos limites legais, por ser um imposto regulatório.

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Por sua vez, os impostos arrecadatórios demandam a confecção de lei pelo Poder Legislativo, observado o Princípio da Anterioridade, pelo fato de serem impostos de natureza fiscal, cuja receita arrecadada tem vinculação com as despesas públicas no âmbito do orçamento público. O imposto arrecadatório é um imposto fiscal, cuja finalidade é prover de recursos o Estado, como por exemplo, o Imposto de Renda.

O segundo ponto a ser objeto de questionamento do ponto de vista constitucional e legal remete, justamente, ao fato de o IOF ser de natureza regulatória (assim como o Imposto de Importação, de Exportação e o IPI) e não arrecadatória. Do ponto de vista macroeconômico.

O IOF é um instrumento de política monetária e cambial utilizado para regular a economia. A sua natureza jurídica é o fato de ser um imposto extrafiscal, regulatório e não fiscal (arrecadatório)

Impostos de natureza regulatória são instrumentos de política monetária e cambial, cujos resultados na economia são de curto prazo, uma vez que não demandam a intervenção do Poder Legislativo, dispensando a confecção de lei para a sua operacionalização, à exemplo da manipulação da SELIC pelo Banco Central. Assim, o IOF pode ser utilizado para estabilizar a economia, como por exemplo, controlar a inflação, além de outras variáveis macroeconômicas.

Do ponto de vista tributário, o IOF não pode ser usado para fins de arrecadação, e esse é o ponto sensível do decreto do Poder Executivo. A sua base de incidência são as operações de crédito, câmbio, títulos e valores mobiliários e seguro.

Assim, o IOF tem a função de regular os níveis de investimento, produção e consumo da economia, exercendo influência sobre a alocação do capital no país, não podendo ser usado com finalidade exclusivamente arrecadatória.

A partir de tais questionamentos é possível afirmar com certa segurança que o decreto do Poder Executivo apresenta ranço formal e material com forte potencial para ser declarado inconstitucional. A inconstitucionalidade formal se refere ao fato de, supostamente, ter exorbitado do poder regulamentar, aumentando as alíquotas do IOF, fora dos parâmetros (máximo) fixados em lei.

Do ponto de sua inconstitucionalidade material, há que se evidenciar a utilização do IOF com “desvio de finalidade”, uma vez que a sua natureza é regulatória e nunca arrecadatória. No que diz respeito ao Decreto Legislativo, independentemente dos interesses em jogo que são inerentes a um Poder político, tanto a sua forma, quanto o seu conteúdo têm potencial para serem declarados constitucionais.

Do ponto de vista formal, o Decreto Legislativo atende plenamente às previsões dos dispositivos constitucionais e regimentais, no que se refere à finalidade de sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do seu poder regulamentar.

Há que se observar, oportunamente, que o decreto do Poder Executivo é regulamentar e, não autônomo, o que permite alertar a sua diferença, com relação a este. Chama-se a atenção para essa diferenciação, por duas razões igualmente relevantes.

A primeira, porque o chamado decreto autônomo do Poder Executivo previsto no Inciso VI do artigo 84, fixando a competência do presidente da República para dispor sobre organização e funcionamento da administração federal (quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de cargos públicos) e extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos.

Diferentemente do decreto regulamentar, ele tem força de lei, tendo em vista que criam normas jurídicas novas ou as alteram no tocante ao contexto da Administração Pública federal. Nesse caso, desde que atendida a redação do Inciso VI, o Congresso Nacional não poderia usurpar a competência do Poder Executivo.

Não é o caso do presente imbróglio. Trata-se de decreto regulamentar sujeito, de acordo com a Carta Magna, a ser sustado pelo Poder Legislativo, na hipótese de que exorbite do poder regulamentar, o que tende a ser comprovado. Esse fundamento dá o devido respaldo para a segunda razão de alertarmos para essa diferença dos decretos presidenciais.

Com todo o respeito, destaca-se parte da decisão do ministro Alexandre de Moraes no âmbito da ADC-96 MC/DF ajuizada pela AGU, requerendo a constitucionalidade do decreto presidencial e a inconstitucionalidade do Decreto Legislativo: “No caso dos autos, o Decreto Legislativo 176/2025 suspendeu uma série de decretos presidenciais atinentes à majoração do IOF.

Entretanto, a conformação constitucional do decreto legislativo não admite que ele seja operado pelo Congresso Nacional contra decretos autônomos, que não estejam a regulamentar lei editada pelo Poder Legislativo”.

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De acordo com o ministro, o Poder Legislativo não poderia utilizar o Decreto Legislativo para sustar um decreto autônomo e, sim, uma ADI genérica. Aquela argumentação remete ao fato de Moraes observar que o presente decreto do Poder Executivo seria autônomo e, não regulamentar, uma vez que não estaria regulamentando uma lei, razão pela qual, teria que ser contestado por ADI para a verificação de sua legalidade.

Contrariamente à afirmação do ministro, argumenta-se que o decreto autônomo remete às situações previstas no Inciso VI, alíneas “a” e “b” do artigo 84 da Carta Magna, pelas razões já apresentadas anteriormente. Ademais, as alterações de alíquotas do IOF devem, obrigatoriamente, atender a uma lei já existente, não deixando de ser um decreto regulamentar, objeto de sustação do atual Decreto Legislativo.

Finalmente, o Poder Legislativo, conforme já se observou no presente texto, tem a competência exclusiva de fiscalizar os atos normativos do Poder Executivo, exercendo o seu papel relativamente ao sistema de freios e contrapesos de um Estado Democrático de Direito. Portanto, aquele poder não usurpou a competência do Poder Executivo.

Do ponto de vista do mérito, o debate se torna ainda mais controverso. A ADC ajuizada pelo Poder Executivo alega que o Decreto Legislativo apresenta inconstitucionalidade material, por ter adentrado ao mérito do decreto presidencial.

De fato, o Decreto Legislativo apresentou fundamentos de natureza formal, além de alegar a inconstitucionalidade material do decreto do Poder Executivo (conforme já exposto), destacando a desproporcionalidade do aumento das alíquotas do IOF, cujas consequências afetariam o contribuinte e o seu patrimônio.

Para além daqueles fundamentos, o Decreto Legislativo observou que a alteração das alíquotas do IOF teve a finalidade de atender a um objetivo de política fiscal e não monetária ou cambial, violando, inclusive, o Código Tributário Nacional.

A despeito da decisão do STF sobre a constitucionalidade do Decreto Legislativo e dos decretos presidenciais, os precedentes daquele tribunal não são favoráveis ao Decreto Legislativo.

Caso não se chegue a um consenso na audiência de conciliação convocada por Moraes (manifestamente inconstitucional, uma vez que ações de controle abstrato de constitucionalidade têm por finalidade declarar ou não a constitucionalidade de uma lei ou ato normativo, não tendo caráter subjetivo, ou seja, não existem partes). Não se descarta uma decisão favorável ao Poder Executivo, uma vez que o STF sofre há alguns anos, um processo crescente de politização.

Nesse caso, haverá um grave recrudescimento das péssimas relações já existentes entre os três Poderes públicos, além de um agravamento das fragilidades do Poder Legislativo em face do Poder Judiciário.

Vera Chemim é advogada dedicada ao estudo e pesquisa de Direito Constitucional com mestrado em Administração Pública (Finanças Públicas) pela FGV de São Paulo.

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