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O filósofo Olavo de Carvalho | RODOLFO BUHRER/Gazeta do Povo
O filósofo Olavo de Carvalho| Foto: Rodolfo Buhrer/ Arquivo Gazeta do Povo

Um filme ajudou a moldar o horizonte imaginativo da minha geração. O filme se chama Na Natureza Selvagem (Into the Wild), e conta a história trágica de Christopher McCandless — um jovem idealista que, frustrado com os desafios e as complexidades da vida adulta, decide empregar uma jornada de autoconhecimento, isolando-se em um ônibus abandonado no Alasca. Após dias sem se alimentar, em sua busca final por encontrar comida, o jovem lê uma frase do livro Dr. Jivago, de Boris Pasternak, que o impele a se salvar: “to call each thing by its right name” (“chamar cada coisa por seu nome”, traduzindo). A partir dela, McCandless decide procurar os nomes de plantas da vegetação local que possam ser comestíveis. A princípio, a iniciativa é bem-sucedida. Porém, fatalmente, ele confunde o nome de algumas plantas e acaba ingerindo uma semente venenosa. Chamar as plantas pelos nomes errados levou à sua morte.

O esforço por dar o nome apropriado aos objetos e aos conceitos é a grande missão de artistas e intelectuais. No Jardim do Éden, uma das primeiras incumbências designadas por Deus a Adão foi a de nominar as criaturas (Gn 2, 20). Adão, que é o arquétipo da humanidade, era também um intelectual, pois cabia a ele dar a definição nominal de todas as criaturas. O grande empreendimento de um agente cultural é o de definir os fatos e os objetos da cultura para que a grande massa tenha as referências nominais apropriadas para utilizar em sua vida corrente. Atualmente, acreditar que existe um nome adequado para cada coisa pode soar utópico. Mas não se pode negar que todo esforço da filosofia e da literatura está em encontrar essas definições.

O fim prematuro é o destino de todo aquele que se mantém ignorante de sua própria posição e desconhece os limites de onde está inserido.

Vemos, em nosso país, uma cultura emergindo nos últimos anos e arrogando para si o destino de mudar o Brasil e resgatar os valores perdidos pelas gerações passadas. Essa nova onda cultural se desenvolveu na seara de um novo movimento conservador que pretende trazer um respiro intelectual ao país. Missão nobre em tese, mas que precisa ser avaliada de maneira crítica. Todo movimento que inicia a partir de um autoelogio acaba fazendo com que os princípios defendidos sejam confundidos com o próprio grupo.

Se há a intenção de resgatar os valores fundantes da nossa sociedade através de um trabalho intelectual sério, o primeiro esforço deve ser o de atuar no campo cultural, oferecendo as definições e os nomes apropriados aos acontecimentos históricos, fenômenos, obras e processos educacionais. Eu mesmo me interessei pelas ideias conservadoras justamente porque vi em seus estudiosos um esforço genuíno por tentar compreender e designar a realidade em que estamos inseridos — especialmente a figura de Olavo de Carvalho, o grande impulsionador dessa vocação intelectual. Excetuados indivíduos isolados e, principalmente, a atuação de algumas editoras, não posso afirmar que esse trabalho intelectual e artístico esteja se desenvolvendo nesse novo rincão da cultura brasileira.

Um documentário não pode ter a pretensão de reconstruir a história, pois não é esse seu papel.

Por exemplo, podemos destacar o fenômeno da criação de vídeos para a internet e de pretensos documentários sobre os mais variados assuntos. Quase todas essas produções procuram revisitar temas amplos da arte, da história e da filosofia, explicando-os sob outras óticas. São vídeos que visam reexplicar o mundo e toda a miríade da cultura através da concatenação de entrevistas — muitas delas improvisadas — e de recortes selecionados à revelia. São trechos retirados de outros filmes e reportagens com, muitas vezes, poucos critérios de seleção. Isto quando não ignoram completamente o direito autoral de terceiros ao utilizar imagens sem autorização.

Na criação de documentários encontramos uma grande caricatura desse novo movimento cultural — e que preciso trazer à tona, pois sinto que meu trabalho influenciou sua existência. Afinal, foi o filme O Jardim das Aflições que despertou todo esse novo movimento cultural à possibilidade de fazer filmes e documentários. Antes do surgimento do Jardim das Aflições, simplesmente não se discutia nem se imaginava que a produção de filmes deveria ter alguma importância. Mas a comparação de O Jardim das Aflições com essa nova produção cultural se encerra aí. Todas as outras características da obra não podem ser comparadas com o que se tem produzido artisticamente no Brasil atualmente.

Um bom documentário é aquele que documenta uma vida, apresenta um acontecimento histórico específico, mostra a realidade de determinado estrato social.

O grande documentarista João Moreira Salles explica que um documentário é, em primeiro lugar, um documento. Ou seja, é um registro de um determinado lugar em um determinado tempo. A produção dele atesta isso. No filme Santiago, o diretor apresenta uma vida humana específica: a de seu antigo mordomo. É a partir da exposição dessa vida que um drama existencial se abre para o espectador. João Moreira Salles não procurou fazer um filme sobre a história universal dos mordomos — que poderia lançar com algum título apelativo do tipo O Fim dos Mordomos.

Um documentário não pode ter a pretensão de reconstruir a história, pois não é esse seu papel. O papel de um documentário é mais singelo, porém mais nobre e transformador, porque ele se enquadra dentro das representações artísticas. Um bom documentário é aquele que documenta uma vida, apresenta um acontecimento histórico específico, mostra a realidade de determinado estrato social etc. É através da exposição de um recorte do mundo que se criam metáforas e símbolos — elementos próprios da arte — que tornam uma obra universal, mesmo ela representando um fenômeno local. Vejam se não é o caso do Jardim das Aflições: é a exposição das ideias e da vida de um homem. Somente isso.

O diretor Douglas Sirk ensinava que, no momento em que se tenta educar uma audiência com um filme, se está fazendo um péssimo filme.

Além disso, essa nova seara cultural nasceu com novas linguagens na internet, especialmente os novos modelos de comunicação de infoprodutos e marketing digital. Por se tratarem de produções audiovisuais, tanto filmes como aulas começaram a ser confundidas umas com as outras. Assim como os experimentos científicos onde se colocam macacos para encaixar peças quadradas em buracos quadrados — damos risada quando eles tentam encaixar círculos em espaços triangulares —, essas novas produções culturais começaram a se confundir sobre qual é seu formato. Dessa confusão, acarretam em pretensos documentários que querem educar a audiência a respeito de fenômenos muito amplos, como a literatura, as artes e a história do Ocidente. É evidente que há uma alienação nisso tudo. O diretor Douglas Sirk ensinava que, no momento em que se tenta educar uma audiência com um filme, se está fazendo um péssimo filme.

Essa confusão entre linguagem artística e marketing contribui muito para o fenômeno da radicalização. A propaganda tem como alvo a atenção da audiência. Quando estamos inseridos em um ambiente cultural de disputa política, a audiência tende a ficar perdida no meio das discussões e dos novos escândalos que pululam diariamente. Nesse contexto, os veículos de propaganda se vêem na necessidade de abusar do sensacionalismo para chamar atenção de um público cada vez mais amortizado pelos intensos debates nos veículos de mídia e nas redes sociais. Essa competição desenfreada gera o fenômeno da intensificação dos slogans e das campanhas publicitárias, que precisam ficar cada vez mais sensacionalistas para garantir a captura do cartão de crédito da audiência. Para agravar ainda mais o caos social, temos a produção de obras que se posicionam como isentas e artísticas — mas que, na verdade, são criadas justamente para radicalizar o debate público e chamar atenção o máximo possível.

A criação de uma obra de arte nunca está isolada no tempo: ela entra no grande celeiro dos cânones artísticos e deve ser julgada pelos pares que a compõem. O mesmo vale para um documentário. Há um cânone na produção de filmes que define os formatos e limita o escopo de sua linguagem. É claro que um artista pode brincar com esses limites, ora misturando linguagens, ora ridicularizando os limites. Mas, para isso, o artista precisa tomar posse dos cânones, dominando-os para atingir sua finalidade criativa. É espantoso notar que, nesse novo movimento que se arroga o resgate cultural e que pretende criar obras de verdadeiro valor, há uma completa cegueira a respeito dos cânones e formatos nas obras de arte. Há ainda certo ódio aos formatos estabelecidos e uma pretensão de recriar tudo. É o movimento conservador mais progressista e iconoclasta que já se viu.

Esse é um erro e uma confusão que precisam ser evitados. É preciso fazer um recorte a ser retratado para não correr o risco de cair na pretensão de reexplicar o mundo através de uma obra. Evidente que uma produção cultural não é uma receita de bolo onde se seguem passos perfeitamente estabelecidos. Contudo, os agentes culturais, empreendedores e artistas devem ter consciência dos limites e das responsabilidades próprias de sua atuação.

Não é possível gerar um resultado positivo de um fenômeno cultural que seja ignorante de sua própria posição. Com atuações desse tipo, confunde-se o que são realmente obras de arte com a criação de peças de caráter publicitário, efêmero, datados. Confunde-se produção artística e intelectual com peças de propaganda. O que acarretará essas novas produções? Infelizmente, o reforço de lugares-comuns, a diminuição do senso crítico e a idiotização da audiência. Não há resgate cultural nisso: apenas uma nova prisão.

No livro homônimo que inspirou o filme Into the Wild, o pesquisador Jon Krakauer revela que o fim trágico de Christopher McCandless poderia ter sido evitado. A morte do jovem aventureiro foi, em grande parte, ocasionada porque ele acreditava estar preso ao local em que encontrou abrigo. Por não ter um mapa da região, ele não sabia exatamente onde estava situado. Ao chegar durante o inverno, os rios estavam com maré baixa. Porém, seus mantimentos foram acabando no outono e, nessa época, os rios voltaram a ficar cheios — impedindo a passagem de Christopher para ir procurar mais comida. Ele acreditava que os caminhos à sua volta estavam obstruídos pelas cheias, e isso o impediu de encontrar mais alimentos. Por não ter consciência de sua correta posição, Christopher não soube que a poucos quilômetros de distância de seu abrigo havia um vilarejo com pessoas que poderiam ter lhe ajudado. O fim prematuro é o destino de todo aquele que se mantém ignorante de sua própria posição e desconhece os limites de onde está inserido.

Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.

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