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Escultura de Ugolino e seus filhos, por Jean-Baptiste Carpeaux.
Escultura de Ugolino e seus filhos, por Jean-Baptiste Carpeaux.| Foto: Imagem cedida pelo autor

De repente, no meio da noite, o barulho de coturnos irrompe nas escadas do prédio, como se um pelotão estivesse marchando nas redondezas. Pela quantidade de passos, certamente não é apenas uma pessoa. O que poderia estar acontecendo a uma hora dessas? Batem na porta. É possível distinguir que chamam seu nome. Mais um pouco e as batidas viram murros. Totalmente desnorteado, pois acaba de acordar e são três horas da manhã, vai atender a porta. Ao abri-la, os soldados dos órgãos de segurança invadem seu apartamento, começam as buscas e você é informado de que está preso. Os verdugos fazem uma varredura completa, coletando todo o material possível. A essa altura, todos os seus vizinhos já acordaram e estão na porta de seus apartamentos presenciando sua desgraça.

Em seguida, você é levado pelos soldados e posto em uma cela com outras quatro pessoas, que acordam com o barulho e olham para você.

A única coisa que consegue dizer a eles é:

- Fui preso… por nada, não sei o que fiz.

Cenas como essas aconteceram realmente a milhões de pessoas que moravam na União Soviética entre 1918 e 1956. É essa a história que conta Alexandre Soljenítsin no seu livro Arquipélago Gulag, um oficial do Exército Vermelho que foi preso como tantos outros. Além do próprio relato e daqueles que viu e ouviu pessoalmente, Soljenítsin revelou a história de muitas pessoas que passaram pela mesma situação. Foram tantos, que ele inicia o livro pedindo perdão porque não foi possível ver tudo, lembrar de tudo e contar tudo: "Dedico este livro a todos quantos a vida não chegou para o relatar. Que eles me perdoem não ter visto tudo, não ter recordado tudo, não me ter apercebido de tudo".

Um gulag era um campo de concentração para onde eram mandados os presos políticos, que em sua maioria eram cidadãos comuns considerados indesejáveis pelo sistema. Havia centenas, milhares deles espalhados na União Soviética, compondo um “arquipélago”, que abrangia, também, toda a rede de repressão e investigação que capturava, prendia e, obviamente, fuzilava pessoas. Faziam parte do “quadro de pessoal” desses campos os presos comuns - homicidas, ladrões etc., que lá serviam de guardas.

Todo esse aparato repressivo era semelhante a um organismo vivo e, conseqüentemente, precisava de movimento e alimento constantes para se manter. Estima-se que ao longo de décadas a quantidade de presos nos campos não baixava de 4 milhões de pessoas, ou seja, o fluxo de prisões era constante, sobretudo porque uma parte considerável dos presos não resistia às condições precárias, aos trabalhos extenuantes e às torturas, ou era simplesmente fuzilado.

E como as pessoas eram mandadas para esses campos de trabalho e extermínio? O novo regime formulou para si uma nova justiça, com critérios totalmente diferentes da anterior e daqueles a que estamos acostumados. Seu princípio supremo era a "consciência revolucionária", um conceito aberto e indefinível de antemão, formado no dia-a-dia da rotina "judicial". Quem a conhecia, certamente, não eram os acusados, e sim O Partido e seus representantes. Ela afastava como "meros formalismos" as leis, a jurisprudência, a doutrina jurídica, e juízos de culpa e inocência, tudo considerado como "ranço de mentalidade burguesa". Os processos eram rápidos, sigilosos, não havia direito à defesa, e quem produzia as provas da condenação era o próprio acusado. O sistema atuava em todos os papéis jurídicos: vítima, acusador e julgador.

Na verdade, os tribunais revolucionários eram um órgão da luta de classes contra seus inimigos e funcionavam para atender os interesses da revolução, buscando sempre obter os melhores resultados para a causa operária (sic).

Nesse cenário completamente invertido, em que as pessoas comuns eram enjauladas e os criminosos governavam, julgavam e vigiavam, a inocência ou a prática de atos de baixa gravidade, até mesmo corriqueiros, não alterava o destino das coisas. Era o triunfo da "consciência revolucionária". Soljenítsin relata que fatos ordinários constituíam o grosso dos casos que conduziam ao Arquipélago, tais como criticar o governo, viajar para um país "imperialista" e contar aos vizinhos sobre o que viu lá, namorar um estrangeiro, manifestar publicamente sua religião, fazer apontamentos técnicos em um projeto no qual trabalhava, pondo em "dúvida o esforço da revolução", cair prisioneiro do inimigo na guerra, atender mal um cliente membro do politburo, concorrer com um oficial de segurança por uma namorada bonita etc. O próprio Alexandre Soljenítsin foi pego por uma bagatela, por um delito de opinião - correspondia-se com um amigo militar e dizia, sem reservas, o que pensava das atrocidades de Joseph Stálin, e foi tragado nas torrentes do Arquipélago Gulag.

Em suma, o que havia era o puro arbítrio, a vontade de ferro daqueles que ocupavam o poder, imposta sem obstáculos sobre a população. Nisso constituía a consciência revolucionária: fulano de tal, ocupante do cargo de supremo acusador da república (o cargo existia mesmo), declarava a culpa e a pessoa desse modo seria julgada e condenada, sem direito a recurso.

E a pergunta que fica é: havia uma saída? Se tudo estava assim, irremediavelmente perdido, se não havia para onde correr, se as instituições estavam corrompidas até a medula, se os seus representantes eram todos indivíduos perversos, sádicos, epulões, que ostentavam uma máscara de idoneidade, se aqueles que deveriam proteger, oprimiam o povo, o que poderia ser feito? Alexandre Soljenítsin encontrou uma saída - uma saída para “dentro”. Ele explica que já pressentia, na época, que a prisão seria a viagem mais interessante de sua vida, e disse que apenas uma pessoa capaz de renunciar a tudo, e que compreendesse que sua vida havia acabado, e que tudo aquilo a que ela se apegava havia ficado pra trás - seus bens, seus amigos, seus parentes, seu emprego, seus sonhos e até seu próprio corpo -, essa era a pessoa capaz de “vencer o sistema”. Lutar contra essa máquina de moer carne era impossível. O triunfo somente poderia ser interno, na preservação da própria consciência e dos olhos totalmente abertos, para que ao menos para si a verdade fosse preservada.

Nessa "viagem", Alexandre Soljenítsin descobriu ainda outra coisa muito importante: ele, como qualquer outra pessoa, poderia ter sido um carrasco e não apenas uma vítima. Refletindo a respeito de sua própria conduta como oficial do Exército Vermelho, percebeu dentro de si o mal que poderia tê-lo levado a torturar e matar inocentes. Muitas vezes, segundo ele, foi duro, orgulhoso e cruel com seus subordinados. Quando foi preso, o pensamento que o consumia era de não ser visto pelos soldados naquela posição de desgraça. O bem e o mal habitam dentro do homem, concluiu ele, e para chegar a um lado ou ao outro basta apenas um passo. Portanto, por mais que gostemos de imaginar que o mal acontece pela iniciativa de pessoas de almas totalmente negras, e que para resolver todos os problemas bastaria identificá-las e aniquilá-las, as situações da vida são tremendamente mais complexas. Se nos orientarmos com base nessa visão simplória da realidade, obteríamos o mesmo resultado: o extermínio de multidões consideradas por "nós" como as almas negras.

Portanto, vale muito a pena embarcar nessa viagem com Alexandre Soljenítsin e voltar ao Arquipélago Gulag. As semelhanças com os nossos tempos não são poucas.

Mateus Campos Felipe é bacharel em direito pela UFPR e servidor público federal.

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