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| Foto: Felipe Lima

A busca pela definição de família a que temos assistido na sociedade brasileira se dá num clima político bastante controvertido e causa estranhamento e desconforto para muitos setores. Se não prestarmos atenção aos contextos em que os debates ocorrem, corremos o risco de nos alinharmos inadvertidamente com movimentos intolerantes, em nome da defesa de ideais longamente propostos. Pela nossa atuação ou pelo nosso silêncio, somos responsáveis por definições que a sociedade está assumindo nos nossos dias.

Eu me sentiria desrespeitado se outros cidadãos quisessem impor a mim seus princípios

Revelando o Estado autoritário

Rodrigo Cunha, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), repugna com veemência soviética o projeto do Estatuto da Família: “É quase um nazismo querer impor ao outro aquela sua convicção particular religiosa”, disse em entrevista ao blog de Kennedy Alencar.

Leia o artigo do advogado e jornalista Taiguara Fernandes de Sousa.

Há duas perspectivas éticas: uma fundamentada em princípios, em convicções, que chamamos de perspectiva deontológica; outra, que pauta a moralidade a partir de resultados da ação humana, que chamamos de perspectiva teleológica (voltada para um fim), que passa a ser uma ética de resultados. Algumas posturas éticas são deontológicas, outras são teleológicas e algumas buscam o meio-termo. Uma perspectiva ética fundada em princípios religiosos – com a qual me sinto sintonizado – será sempre deontológica, pois receia que uma ética de resultado promova cálculos utilitaristas e se coadune com a máxima segundo a qual “o fim justifica os meios”.

No entanto, uma ética de princípios – deontológica – pode promover um fundamentalismo ético. Com base em princípios bem fundamentados que visam defender a vida, alguém pode praticar atos concretos que atropelam e destroem vida. Um exemplo clássico desse tipo de fundamentalismo ético é o de alguém que vê uma pessoa, fugindo de um agressor, se esconder em determinado lugar. O agressor pergunta se a pessoa viu o fugitivo e onde ele estaria. Com base no princípio de nunca mentir, a pessoa responde positivamente e aponta o esconderijo. Essa postura é fundamentalista pois segue sempre o princípio sem raciocínio, fechando os olhos para a realidade. Um cidadão crítico poderia facilmente avaliar e contornar a situação, percebendo que há dois princípios em conflito: não mentir, mas também não ajudar assassinos.

Diante disso, questiono: nós, cidadãos que agimos a partir de princípios bem definidos, não estamos praticando ou concordando com posturas fundamentalistas em apoiar ou calar frente à atual tentativa de definir família nos moldes do chamado Estatuto da Família?

Há, na tradição ocidental – com ampla base religiosa, histórica e doutrinária –, o princípio de que a família se constrói a partir da conjugalidade e da consanguinidade. Mas, no presente contexto social e político, promover e definir uma legislação fundada exclusivamente em tais princípios é uma posição fundamentalista, pois, em nome de um princípio, atropela a vida, incentiva atitudes de ódio e instiga setores sociais já em conflito.

Podemos assumir outra postura: defender que, na atual sociedade brasileira, um conceito mais amplo de família – que inclua as relações homoafetivas – pode estar apontando para outros princípios indispensáveis para a convivência social: tolerância, paz, não violência, liberdade religiosa – incluindo a liberdade de não ter religião. Como cidadão que valoriza a religião, não me sinto agredido nem desrespeitado quando outros cidadãos vivem sua vida a partir de outros princípios. Eu me sentiria desrespeitado se outros cidadãos quisessem impor a mim seus princípios; por isso, não posso concordar com situações e legislações que façam o inverso: impor a outros os princípios que assumo como meus.

Mário Antônio Sanches é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Bioética da PUCPR.
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