A prova testemunhal, desde os tempos mais remotos, sempre foi vista com reserva pelos mais variados povos e civilizações. Muitas também foram as vítimas da perversidade e injustiça, pois a testemunha, aliada aos interesses do monarca ou detentor do poder que tinha a força discricionária suprema, poderia levar pessoas a perder suas vidas, liberdade e patrimônio. Perseguições eram perpetradas pelas testemunhas alinhadas a determinado grupo de poder. Portanto, não é por outro motivo que a prova testemunhal ficou conhecida como a “prostituta” das provas. Séculos se passaram e hoje, mesmo com contornos verborrágicos de que o bem da nação permite o retrocesso social, retomamos, ainda que de forma implícita, esse período medieval com a delação premiada.

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Retomamos o período medieval com a delação premiada

Colaboração sem segredo

Muito se fala dos novos institutos da colaboração premiada e da leniência. Algumas poucas vezes com real interesse acadêmico; muitas vezes, na defesa de interesses, seja os das defesas de investigados nelas mencionados, seja do próprio Ministério Público.

Leia o artigo de Carlos Fernando dos Santos Lima, procurador da República
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Uma das críticas à delação, tão discutida em meio às investigações da Operação Lava Jato, decorre do fato de estar sendo obtida não de forma voluntária, mas quando o réu delator está preso, ocupando as conhecidas estruturas do sistema penitenciário brasileiro que, é consabido, corresponde a “masmorras medievais”, termo esse já tão bem colocado pelo ministro Cezar Peluso. O custodiado recebe a proposta de “colaboração”, o que por si só já torna o consentimento questionável ante o grau de deterioração das cadeias públicas pátrias superlotadas, em um Brasil que ostenta mais um recorde mundial, o de quarta potência carcerária do planeta.

Jurisprudência consagrada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal é uníssona no sentido de que depoimento de corréu não serve como prova válida para condenação. Esse é outro ponto que merece reflexão. Se nem mesmo o depoimento de corréu não colaborador é suficiente para incriminar qualquer pessoa, com muito mais razão a delação premiada não pode ser utilizada como instrumento de condenação.

A partir do momento em que o juízo admite como válida a “cooperação voluntária” de um acusado preso e considera tais declarações como prova contra outras pessoas (chamando o delator à presença do magistrado sempre que necessário em troca de futuro abrandamento da reprimenda), abdicamos do Estado Democrático de Direito, ingressamos em um sistema de terrorismo institucionalizado, com nítida quebra dos princípios que sustentam a Constituição.

Explica-se. O sistema acusatório estabeleceu que cabe ao Ministério Público promover a ação penal, baseado nos elementos indiciários colhidos durante a fase investigativa. Na fase de inquérito permanece o ranço inquisitorial, com procedimentos secretos que tramitam entre o gabinete do parquet e o juízo, negando ou dificultando ao acesso pela defesa dos interessados.

O juízo deve ser imparcial e agir sempre que provocado, sopesando os elementos dos autos para concluir pela procedência ou não da ação penal. Porém, ao prolatar a primeira sentença oriunda das inúmeras ações ajuizadas pelo MP e, admitindo como válida a palavra do delator, ficará ad eternum vinculado à sua “convicção íntima”, que estabeleceu tal premissa (falsa ou não) como verdade absoluta. A partir daí, cremos que o processo penal se torna instrumento de massacre em que não existirá contraditório judicial ou ampla defesa. Para o juízo, o que vale é a palavra do delator, um réu da “confiança do magistrado”, cuja credibilidade é absoluta e inquestionável e pode ser utilizada em vários processos diferentes e sucessivos, apesar de versar sobre tema comum a todos. Neste momento não há mais defesa, apenas acusação. O MP acusa, o juízo (através do delator) acusa, o acusado se autoacusa, a imprensa alimentada diariamente acusa e acusa.

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Se a testemunha é a prostituta das provas, o que dizer da delação premiada?

Luciano Borges foi presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef) e ex-procurador do Estado do Ceará. Samir Matar Assad é advogado.