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O ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine, foi condenado por corrupção em processo da Lava Jato pelo então juiz Sergio Moro.
O ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine, foi condenado por corrupção em processo da Lava Jato pelo então juiz Sergio Moro.| Foto: Miguel Schincariol/AFP

O Supremo Tribunal Federal, em decisão majoritária da Segunda Turma, ganhou o noticiário nacional por conceder ordem de habeas corpus em favor do ex-presidente do Banco do Brasil e Petrobras, Aldemir Bendine, por suposta violação à ampla defesa e devido processo legal. Em sua síntese, a impetração visava a “concessão de ordem para reconhecer o direito de o paciente oferecer seus memoriais após os delatores”. Eis objeto do caso julgado que, por sua vertical repercussão sobre os feitos da Operação Lava Jato, será, em demanda análoga, alvo de pronunciamento do plenário da corte para fins de estabilidade jurisdicional e segurança jurídica dos processos em curso.

Ora, a matéria litigiosa diz respeito à questão processual direta e frontal: há ou não regra legal determinando que o réu delatado tenha o direito de se manifestar após os delatores? E, na sua falta, poderia o Supremo, à luz de construtivismo judicial, estender a garantia do devido processo legal e da ampla defesa, albergando a pretensão de diferimento da manifestação final ao interessado?

Iniciando a análise pelo bojo da legalidade positiva, convém salientar que o artigo 403 do Código de Processo Penal, em nenhuma linha ou entrelinha, previu a possibilidade de o réu delatado falar posteriormente a eventuais delatores. Ou seja, a lei vigente não diz “sim" nem "não” e, ao silenciar, abre margem para debates jurídicos sobre o ponto específico. Todavia, o acordo de colaboração premiada não retira a qualidade de réu do delator e, como não existem réus de primeira e segunda grandeza, a regra geral deve ser a concomitância de manifestações finais, salvo excepcionalidade concreta que justifique possível preferência de ordem.

A democracia moderna exige a máxima realização prática do ideal de justiça, repudiando manobras hermenêuticas espúrias em imorais juízos de empreitada

Avançando no exame legislativo, a Lei da Colaboração Premiada (12.850/2013) define “organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção de prova, infrações penais correlatas” e, frisa-se, o “procedimento criminal a ser aplicado” (artigo 1.°). Posteriormente, no artigo 22, foi previsto o seguinte: “Os crimes previstos nesta lei e as infrações penais conexas serão apurados mediante procedimento ordinário previsto no Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)”. E, como já visto, o CPP não exige que réus delatados falem por último.

Deitadas as premissas acima, é possível concluir que, regra geral, não há qualquer nulidade ou lesão a garantias constitucionais nos processos penais em curso que tenham exigido apresentação concomitante de memoriais entre réus, delatores ou não. Como inexiste previsão normativa expressa sobre o benefício de ordem a delatores em razões finais, impossível, em tese, a configuração de prévia e chapada ilegalidade ou abuso de poder em situações processuais correntes que tenham assegurado a igualdade temporal de manifestação dos réus. No entanto, exceções podem ocorrer.

Ilustrativamente, lança-se a hipótese na qual um dos delatores, em razões finais, tira um coelho da cartola, juntando documento ou inovação argumentativa que, em ato sentencial imediato e sem contraditório, vem agravar a situação sancionatória de outro réu. Nesse caso, por exemplo, haveria, sim, lesão à ampla defesa e devido processo legal, configurando condenação inconstitucional aquela que, sumariamente, no entardecer processual, agrava a pena de réu sem sua prévia manifestação sobre o fato ou circunstância que lhe é juridicamente prejudicial.

Consequentemente, eventual benefício de ordem em favor de delatores, para fins de razões finais ou memoriais, será, quando ocorrer, um fenômeno processual dinâmico a ser materializado, excepcionalmente, à luz das bases fáticas e jurídicas de cada caso concreto, impondo ao magistrado competente o expresso dever de fundamentação dos motivos que justificam a quebra de igualdade e concomitância de manifestação do polo passivo criminal.

Por tudo, a decisão do STF inaugura uma nova fase de desenvolvimento do jovem instituto da colaboração premiada no Brasil. Aqui, por mais relevante que seja o inegociável interesse público no firme, enérgico e decidido combate à corrupção, é importante termos a serenidade necessária ao debate sério e profundo de assuntos jurídicos sensíveis e intimamente relacionados à efetiva proteção de garantias constitucionais fundamentais. Afinal, não se combate o crime violando a lei.

Felizmente, há o surgir de uma cidadania pulsante que não mais assiste calada aos desmandos impunes dos donos do poder. Em época de ânimos políticos tão acesos, é natural que o sentimento de justiça aflore com o calor de tons subjetivos. Ao Judiciário, por sua independência e imparcialidade, cabe enfrentar as candentes questões polêmicas com a simples tecnicidade da lei, fazendo de suas decisões monumentos públicos de uma ordem juridicamente justa. No fim, antes de absolvições ou condenações, a civilização apenas exige que a legalidade seja respeitada e aplicada a todos, poderosos ou não.

Em sua rota evolutiva, a democracia moderna exige a máxima realização prática do ideal de justiça, repudiando manobras hermenêuticas espúrias em imorais juízos de empreitada. Que o Supremo saiba honrar seu alto papel no equilíbrio republicano, protegendo o tribunal de investidas sorrateiras ou subversivas que, sob a fútil roupagem de proteção jurídica, acabam por denegrir a imagem da corte, banalizando a nobre e invulgar jurisdição constitucional.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.

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