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Quando Marx afirmou que a história da humanidade é a história da luta de classes, repetia a ideia maluca de Rousseau, formulada quase 100 anos antes, de que o homem era naturalmente bom, mas se corrompeu pela instituição da sociedade e da propriedade privada. Desde então, a doutrina marxista ganhou ares axiomáticos e praticamente todo formador de opinião concorda com ela. Esse pensamento é reproduzido não só na academia, mas também na cultura: literatura, cinema, novelas, programas de tevê.

Dias atrás, assistindo a um famoso programa dominical, fui surpreendido por um quadro interessante. Quatro artistas – desses que fazem novelas – convidaram quatro crianças beneficiadas por um projeto social da emissora em parceria com a Unesco para terem contato com a profissão que desejam seguir. Foi lindo ver o olhar daquelas crianças, vislumbrando a possibilidade de fazer aquilo com que sonham. Uma delas, com 7 anos e um desejo impetuoso de ser médica, vibrou ao presenciar a realização de um ultrassom. Possibilitar esse contato muitas vezes é decisivo para um indivíduo. Mostrar aonde seu esforço pode levá-lo é um exercício de motivação incomparável. Parabéns aos envolvidos.

Antes da falência do ensino público e do isolamento dos ricos por causa da violência, era comum ricos e pobres estudarem e brincarem juntos

Porém, na semana seguinte, o programa convidou quatro crianças de condição social elevada para visitar projetos sociais. E o maniqueísmo ideológico estava formado.

O problema não foi a ação em si, mas o discurso implícito. Da boca dos artistas, essas crianças foram convidadas a “viver uma experiência nova”. Uma delas ouviu: “eu tenho certeza de que esse lugar vai mudar a sua vida”. E a outra disseram que teria contato com crianças que, como ela (?), “sonham com um futuro melhor”. Pensei: que mundo é esse onde crianças ricas não sabem mais o que são crianças pobres? Na minha infância isso era a coisa mais normal do mundo. Tive amigos ricos e amigos favelados.

Antes da falência do ensino público – bingo! – e do isolamento dos ricos por causa da violência – bingo! –, era comum ricos e pobres estudarem e brincarem juntos. Fato é que, apesar de as crianças de condições sociais muito díspares estarem cada vez mais separadas hoje, essa não é a realidade absoluta. Qualquer família que melhora um pouco sua renda coloca os filhos em escolas particulares, onde eles têm contato com crianças mais ricas (e com melhor ensino, claro). Eu mesmo, que sou negro, professor de escola pública e no programa fui curiosamente representado pelas crianças assistidas pelo projeto social, tenho filho em escola particular. E grande parte da população está dentro dessa média que o discurso ignora. Por que reforçá-lo, então?

Em seu livro Os intelectuais e a sociedade, o economista americano Thomas Sowell lembra-nos de que, em geral, os formadores de opinião favorecem-se de “crenças abstratas que são comuns entre os intelectuais, os quais podem ter pouco ou nenhum conhecimento de primeira mão sobre os indivíduos, as organizações ou as circunstâncias concretas envolvidas”. E que, “além do mais, tais atitudes não são somente disseminadas para muito além das fileiras da intelligentsia, mas se tornam base de políticas, leis e decisões judiciais”. Bingo! Esse discurso favorece a própria intelligentsia e o governo, que dele se aproveita para criar seus programas sociais que, apesar de não resolverem os problemas, lhe geram o bom e velho capital eleitoral.

Paulo Cruz é professor de Filosofia e mestrando em Ciências da Religião.
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