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Campo Largo muda para bandeira laranja
| Foto: Hedeson Alves / Gazeta do Povo / Arquivo

Houve um tempo em que lamentar abertamente a existência de determinados seres humanos era algo que deveria ser mantido em segredo. Não mais.

A Covid-19 parece ter dado a alguns a licença poética que lhes faltava para desprezar, julgar e odiar publicamente aqueles a quem sempre desprezaram, julgaram e odiaram em seu íntimo. A boa notícia é que agora este ódio pode ser praticado em nome do amor. E aqueles que não o praticam não têm desculpa, pois o que não falta é o acesso gratuito à informação de qualidade ou à “verdade”, como costumam chamá-la.

Basta ligar a tevê, por exemplo, para ouvir analistas explicarem – com a mesma certeza triunfal de uma criança de 4 anos de idade que postula que 1+1=2 – que só morreram quase 200 mil pessoas no Brasil porque o presidente Jair Bolsonaro foi à padaria em março. E é claro que, devido à influência deste ser nefasto que ocupa a Presidência, milhares de pessoas ousaram levar uma vida relativamente normal e acabaram no lugar que mereciam: o túmulo.

As multidões fazendo compras de Natal no Brás? Genocidas irresponsáveis, ocupados demais para assistir ao Fantástico e tacanhos demais para entender que máscaras artesanais feitas com tecidos baratos por titias e vovós simpáticas buscando uma renda extra são a mais sofisticada e segura garantia contra um vírus mortal.

“O Brasil é o país da ignorância!” é uma das frases que nunca saiu de moda. Quem a proclama nos dias de hoje ganha status de filósofo empático e expert em lidar com pandemias globais.

A Covid-19 transformou a condescendência em grandeza de espírito e a soberba em solidariedade. O rico olha para os pobres na birosca da esquina e lamenta o quão tolas são as massas. A ausência de máscaras em seus rostos é, sem dúvida, o retrato da ausência de votos no PSol naquela região. Falta-lhes consciência de classe, por isso morrem. Nada que uma boa aula de História (on-line, é claro, pois “ano letivo se recupera; vidas não”) não possa resolver. Como explicar o novo normal para uma gente que nem sequer entendia o antigo?

Neste ínterim, o pobre assiste ao Fantástico e se espanta ao ver os ricos nos bares das áreas nobres da cidade. É o chope da indiferença. Fazem isso porque não estão nem aí para nada. Nunca estiveram, e prova disso é o valor estampado em seus contracheques. Eis a famosa elite brasileira: um monstro responsável por todos os males. Ao menos nisso, Lula tinha razão.

E o que dizer da classe média? Esses são aqueles que ousam ir à praia nos fins de semana. Será que não repararam nos gradis da orla? Não leram o decreto municipal? Ou pensam que, somente porque a praia é um recurso natural criado por Deus, podem usufruir dela como quiserem? A presença de vitamina D e ar livre não lhes dá o direito de viverem como quiserem, ora bolas!

Irresponsáveis. Tiranos. Genocidas. É só isso que existe no Brasil de hoje.

Afinal de contas, pessoas deveriam salvar as vidas umas das outras, muito embora estejam ocupadas demais trabalhando diariamente para salvar a própria pele. A Covid-19 obteve a proeza de transformar o luto de uma família em culpa de todos aqueles que foram ao supermercado na semana passada. Para isso, não é necessário nenhum embasamento científico. Basta “sentir”. Afinal, se todos estão em pânico e você está tentando manter a calma, o problema está em sua frieza.

E, se eu prefiro que você “morra para poder aprender”, é porque prezo pela sua vida, apesar do fato de você não estar sabendo vivê-la. Dá para entender ou preciso desenhar?

O “novo normal” trouxe consigo uma coleção de arquétipos. Sirva-se à vontade. Da alienada digital influencer que, enquanto saboreia uma torta de limão na cafeteria do shopping, faz stories do idoso que está com o nariz para fora da máscara. Enquanto posta, ela quase derruba um pouco do glacê, lembrando-se por uma fração de segundo (não mais que isso) que está mastigando... sem máscara.

Há também o arquétipo do âncora de telejornal com o semblante franzido e expressão sóbria digna de causar inveja aos que noticiaram o Holocausto. Lendo seu teleprompter, ele proclama manchetes revoltantes: “Com um sol de 40 graus, há pessoas na praia!”, “Em uma terça-feira normal, há multidões no metrô!”, ou, então, a minha preferida: “Na noite de Natal, há famílias planejando reunir-se e agradecer a Deus por mais um ano de vida!”.

Irresponsáveis. Tiranos. Genocidas. É só isso que existe no Brasil de hoje.

Parabéns ao governo do Ceará, que começou a veicular na tevê um vídeo no qual uma filha em lágrimas fala sobre o quanto seu pai era maravilhoso. Ao fim da peça, olhando para a câmera enquanto o corpo do pai é baixado ao túmulo, ela diz: “Só que hoje ele não tá aqui. Porque fui eu que contagiei ele. Desculpa, pai.”

A essa altura, o asco é grande demais para que o tom de ironia dos parágrafos anteriores se mantenha. Meu estômago se embrulha enquanto penso nos milhares de pessoas comuns que, além da dor do luto, passarão a carregar consigo a certeza de que são culpadas pelas mortes de seus entes queridos. Culpadas por supostamente “contagiar” aqueles que amavam com um vírus sobre o qual nenhum cientista intelectualmente honesto afirma ter certezas.

Não, seu pai não morreu devido a uma pandemia global que atingiu milhões de pessoas. Seu pai morreu porque você não fez o que deveria ter feito. Irresponsável. Tirano. Genocida. Para os produtores e consumidores da Verdade, é assim que você, reles mortal, deve se sentir.

Feliz Natal, use máscara, cale a boca e fique em casa se não quiser matar a sua mãe na semana que vem.

Arthur Vivaqua é pastor, teólogo e consultor de estratégia e marketing aplicados à educação.

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