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Duas foram as reações dos políticos e de setores da imprensa quando noticiado o assassinato do médico Jaime Gold, morto a facadas por um menor de idade na Lagoa, Zona Sul do Rio de Janeiro: primeiro, propor a criminalização do porte de armas brancas; segundo, dizer que o fato não justificava a redução da maioridade penal.

Curiosamente, os comentários da população nas redes sociais eram exatamente o oposto: ressaltavam que “facas não matam pessoas; pessoas matam pessoas”, ironizavam a possibilidade de um “Estatuto da Desfaquização” e utilizavam amplamente o caso para respaldar a mudança na idade penal. A situação demonstra o abismo existente entre os políticos e a realidade do povo.

Além da tragédia que é a destruição de uma vida humana, o caso revela um outro desastre: o da inutilidade do Direito.

Quando Miguel Reale definiu o fenômeno jurídico na sua Teoria Tridimensional do Direito, ele começou por um elemento: o fato. Reale criticava os que diziam que o Direito era somente norma pura. “Não, a norma jurídica é a indicação de um caminho. Porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor”, escrevia.

As leis “não pegam” porque não regulam coisa alguma no mundo real: são antes devaneios de legisladores

A observação de Reale foi a mesma feita por Aristóteles e Tomás de Aquino: não é possível ao Direito prescindir da realidade. Todo conhecimento que adquirimos, dizia Aristóteles, adquirimos por meio dos sentidos, que nos dão a experiência do real. O conhecimento do justo, portanto, não pode ser mero jogo de palavras na mente de ideólogos: cabeça de legislador não altera os fatos. Tomás de Aquino fazia um apelo à racionalidade, único meio possuído pelo homem para conhecer o real: “[a lei] que se afasta da razão é lei iníqua; não tem natureza de lei, mas, antes, de violência”, dizia. E, se era violência, podia ser resistida, desobedecida.

O Direito, quando perde o substrato da realidade e abandona os fatos, se torna completamente inútil. As leis “não pegam” porque não regulam coisa alguma no mundo real: são antes devaneios de legisladores mais interessados em vaidosamente “deixar sua marca” ou defender uma ideologia. Não são normas racionais. Ao abdicar do fato real, o Direito fracassa realmente (sem trocadilhos). Contra fatos não há argumentos.

O Estatuto do Desarmamento e, agora, o da “desfaquização” ignoram a realidade óbvia de que um bandido, por definição, é um fora da lei: ele não deixará de usar armas ou facas porque um deputado em Brasília disse a ele para fazer isso – deputado que nunca abre mão dos seus seguranças reais e realmente armados, aliás.

Da mesma forma, a resistência à redução da maioridade penal é outra violência aos fatos: está mais do que evidente que menores de 18 anos cometem crimes com integral conhecimento e plena deliberação do que estão fazendo.

Há quem defenda que a realidade não existe, que dela apenas temos acesso a uma impressão pessoal: tudo é relativo, eles disseram. Infelizmente, no trágico assassinato de Jaime Gold, a faca não era uma impressão subjetiva e o golpe que o matou não era relativo: a arma era real, empunhada por uma pessoa real, que desferiu um golpe real – a faca não matou ninguém sozinha.

Fazer leis que neguem fatos evidentes é exatamente produzir Direito inútil. Essa inutilidade é o fracasso mais crítico a que o Direito já pôde chegar.

Taiguara Fernandes de Sousa é advogado.
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