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A cultura sempre foi saudada como essencial nos processos civilizatórios. Mas raramente, e em particular no Brasil, constituiu-se como política pública de longo alcance. Nas suas melhores versões ficou restrita a uma de suas dimensões: a de financiamento de obras de arte e de projetos culturais. Curitiba, pioneira, estabeleceu um programa de incentivo à cultura ainda no início dos anos 1990. E foi das primeiras a combinar a renúncia fiscal – o “mecenato subsidiado” – com aporte de recursos diretos do Tesouro Municipal.

No entanto, o pioneirismo curitibano descolou a cidade de avanços posteriores. Não acompanhamos a implantação do Sistema Nacional de Cultura, articulado com as esferas municipais e estaduais a partir da gestão do ministro Gilberto Gil, em 2003. Tal política foi articulada num tripé de garantia regular de recursos públicos, de sistema de controle social das políticas públicas baseado em conselhos e conferências e em um plano estratégico orientador das políticas públicas. Curitiba teimou em não avançar nestes dois últimos itens, e a adesão ao Sistema Nacional de Cultura veio apenas em 2013, num dos primeiros atos da gestão Gustavo Fruet – fomos a penúltima capital brasileira a aderir ao sistema.

Como a missão de ser novamente pioneira e abrindo mão de suas prerrogativas, a Fundação Cultural de Curitiba transferiu para a Conferência Extraordinária de 2014 a elaboração da minuta da lei do Sistema Municipal de Cultura. Realizada em duas etapas, com quatro seminários e mais de duas dezenas de conferências temáticas, regionais e setoriais, que envolveram mais de 3 mil participantes, foi uma das maiores ações de participação popular da cidade. E de forma inédita, elaborou e votou a minuta de lei do Sistema Municipal de Cultura.

As mudanças retiram a zona de conforto em que vivia a cena cultural da cidade

Esta conferência também ampliou a participação dos movimentos populares que fomentam a cultura viva nos bairros da cidade e legitimou a participação de várias linguagens artísticas que estavam à margem das políticas públicas, como a cultura alimentar, a moda, o design, a arquitetura e a ilustração. O texto atualmente está em fase de análise pela Procuradoria do Município, para então ser remetido à Câmara Municipal.

O Conselho Municipal de Cultura atual, embora ainda não funcione na forma prevista na minuta, tem todas as suas decisões homologadas pelo presidente da FCC, funcionando, na prática, como deliberativo. O sistema de conferências temáticas livres, setoriais e regionais, com respectivos conselhos, em 2016 elegerá um Conselho de Políticas Culturais, formado majoritariamente por membros da sociedade civil, constituindo assim um dos mais amplos sistemas de controle social sobre política pública do Brasil.

Em paralelo, a FCC iniciou amplo processo de descentralização, investindo recursos e promovendo ações culturais diretamente nos bairros. O edital para produção cultural das regionais de 2014, por exemplo, investiu quase R$ 1 milhão em ações culturais nas nove regionais da cidade. Todas as regionais já possuem conselhos próprios e, como a Gazeta do Povo constatou, essa organização estimulou de forma inédita que, durante as consultas públicas para o orçamento da cidade, a população reivindicasse recursos para a cultura, antes uma tradicional “esquecida”.

Em outra frente de estímulo à participação e controle social, a FCC transferiu para o Conselho Municipal a condução da reformulação da nova lei de incentivo à cultura. A minuta básica compilou deliberações de conferências, reuniões, audiências e estudos acadêmicos. E está mobilizando um amplo debate, convergindo diversas reivindicações e proposições através de consultas públicas.

A proposta em debate apresenta duas vertentes: uma fortalece as várias cadeias produtivas da economia da cultura, que podem gradativamente ampliar sua autonomia e capacidade própria de financiamento. A outra requer programa permanente de apoio à pesquisa, às obras experimentais, às manifestações da cultura viva, das primeiras obras, da formação artística-cultural e das linguagens e modalidades estéticas, que historicamente têm dificuldades em obter financiamento privado. Essas vertentes são indissociáveis numa política cultural republicana, moderna e promotora da universalização da cidadania cultural.

A proposta também assume corajosamente que a crise de financiamento dos municípios é estrutural e que nos próximos anos estará sujeita a alternâncias de estabilidade; por isso, permite uma flexibilidade dos “tamanhos” de recursos da renúncia fiscal e aporte direto. Contudo, o Conselho Municipal terá participação e exercerá controle social nessas escolhas.

São mudanças que retiram a zona de conforto em que vivia a cena cultural da cidade, pois a política cultural passa a ser definida pela convergência de toda a diversidade cultural e da ampla variedade dos fazeres artísticos. Mas são mudanças que apontam para políticas inclusivas e transformadoras que, mesmo com foco nos 2 milhões de habitantes da cidade, são impulsionadas pelos artistas, produtores e movimentos culturais de todas as linguagens e modalidades estéticas.

Marcos Cordiolli, historiador, educador e produtor de cinema, é presidente da Fundação Cultural de Curitiba.
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