• Carregando...
Marcelo Queiroga
O cardiologista Marcelo Queiroga tomou posse nesta terça-feira (23) como ministro da Saúde| Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Entre as várias polêmicas circulando nas redes sociais após o anúncio da escolha do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, está o debate sobre se ele é doutor ou não. Questionar quem tem o direito de ser chamado “doutor” não é novidade, mas nos últimos meses esse tema tem sido recorrente no Brasil e em outras partes do mundo.

O ministro Queiroga recebeu o grau de “médico” pela Universidade Federal da Paraíba em 1988, e, apesar de ter iniciado o curso de doutorado em Bioética pela Universidade do Porto em 2010, ainda não o concluiu; portanto, não obteve o grau de “doutor”. No Brasil, a graduação em Medicina confere ao profissional o direito de ser chamado de “médico” e não de “doutor”. É diferente, por exemplo, do que acontece nos Estados Unidos. Lá, o médico passa por uma undergraduation e só depois em uma graduation, quando entãorecebe o título de “doutor em medicina” (M.D.). Na língua inglesa, inclusive, a palavra para “médico” é physician ou doctor. Assim como nos Estados Unidos, alguns países de cultura anglo-saxã seguem a mesma (e correta) regra. Em outras culturas, desde a Idade Média, também se tornou costume chamar o médico de “doutor”. Por isso, no Brasil, o Conselho Federal de Medicina emitiu, em 2014, a Resolução 2.169, que diz no seu artigo 2.º que “é facultado ao médico(a) (...) utilizar antecedendo seu nome a palavra ‘doutor(a)’ ou sua abreviatura, conforme o consagrado pelo direito consuetudinário”. Ou seja, conforme nossa cultura e costumes.

Então, no Brasil, a quem é formado em Medicina é facultativo ser chamado de “doutor”, mas é obrigatório ser tratado como “médico”. Aliás, temos visto frequentemente o termo “ex-médico”, que soa tão estranho quanto “risco de morte”. O grau de “médico” é atributo do sujeito que concluiu o curso de Medicina, e só pode lhe ser retirado se constatados problemas na obtenção desse grau. Para o exercício da medicina, o profissional deve ter uma carreira baseada em princípios éticos e legais. Se assim não o for, poderá ter suspendido ou cassado o seu direito ao exercício da atividade profissional, mas continuará sendo “médico”.

Após a eleição do democrata Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, em dezembro de 2020, uma polêmica semelhante à ocorrida com Marcelo Queiroga também aconteceu por lá. Jill Biden é a primeira esposa de presidente americano que chega à Casa Branca com uma carreira acadêmica prévia. Ela é professora universitária, com dois mestrados e um doutorado (Ed.D.), além de consolidada produção científica na área da educação. Ela quer continuar trabalhando, e prefere continuar sendo chamada de Dra. Biden. Essa atitude nos remete a Ruth Cardoso, esposa de Fernando Henrique Cardoso. Ela tinha uma biografia semelhante e não gostava de ser tratada como “primeira-dama”, título um tanto quanto arcaico e misógino.

A intenção da dra. Biden acarretou diversas reações contrárias. O artigo Is there a doctor in the White House? Not if you need an M.D. (“Há uma doutora na Casa Branca? Se você precisa se formar em medicina, não”), publicado no prestigiado The Wall Street Journal em 2020, é um dos exemplos. O subtítulo do artigo é ainda mais agressivo: “Jill Biden deveria pensar em deixar de lado o título, que parece fraudulento, até mesmo cômico”. Em tempos de extremismos, algumas pessoas acabam perdendo a noção do que é moral ou legal. O título de “doutor” obviamente pertence a quem concluiu um curso de doutorado, como Jill Biden, independentemente da área de concentração.

Em outros casos, não nesses extremos, podemos aceitar o porquê de muitas pessoas terem dificuldades em entender quando uma pessoa deve ser chamada de “doutor”. Isso se deve, principalmente, à falta de uma padronização mundial. Por exemplo, para exercer a medicina no Brasil e na China basta o grau de médico, obtido com um ciclo de estudo, a graduação. No Canadá, com um ciclo acadêmico é possível a obtenção do grau de “doutor em Medicina”. Nos Estados Unidos, na Europa e em muitos países são necessários dois ciclos acadêmicos. Nos Estados Unidos, antes de ir para a residência, o médico tem o grau de “doutor em Medicina”; no Reino Unido, o de “bacharel em Medicina e Cirurgia”; e, em Portugal, o de “mestre em Medicina”. O mesmo ocorre em outras áreas. Por exemplo, o título de “doutor em Engenharia” (Eng.D.) pode ser obtido no nível de graduação, de mestrado ou de doutorado, dependendo do país em que a pessoa estiver.

Os graus de “bacharel”, “licenciado”, “mestre” e “doutor” deveriam indicar a capacitação acadêmica e o conhecimento adquirido ao longo de anos de estudo e pesquisa. Mas não: esses títulos foram, ao longo dos anos, raptados e vilipendiados, ao serem usados para dar ao portador a falsa aparência de poder, tal qual um conde ou um duque, quiçá um imperador. O personagem Argileu Palmeira, interpretado por Hugo Carvana na novela Gabriela, da Rede Globo, em 1975, distribuindo seu cartão de apresentação com o título de “bacharéis”, só assim mesmo, é uma incrível sátira ao uso desses títulos.

Abandonando a sua essência como um título acadêmico, “doutor” se apresenta há anos como um título social. Desprestigiado, e mal usado, entra em várias discussões pujantes na atual sociedade. Méritos, direitos, igualdades etc. Mas acredito que a principal discussão seja o quanto, independentemente de que forma os chamamos, temos valorizado nossos professores e nossa educação.

Carlos Henrique Ferreira Camargo é médico neurologista, mestre e doutor em Medicina Interna.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]