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| Foto: Kevin Winter/AFP

Para quem se interessa por canção popular e a valoriza como forma de arte, a conquista do Prêmio Nobel de Literatura por Bob Dylan emite sinais trocados. Por um lado, a chancela de uma instituição com o peso da Academia Sueca legitima o mérito do ofício do letrista; por outro, reforça a confusão que se faz para avaliar o autor de canções conforme o critério estético adequado.

Para uma analogia, podemos lembrar que, embora o cinema tenha sido, em sua origem, considerado pela inteligência estabelecida como forma vulgar de entretenimento para massas, formou-se hoje praticamente um consenso quanto ao fato de Charles Chaplin, por exemplo, ter sido um grande artista. Para essa avaliação, não se costuma compará-lo a dramaturgos ou pintores: apenas o singelo fato de ele ter sido um grande, pioneiro cineasta, coloca-o como um dos grandes criadores do século 20.

Em seu entendimento atual, a canção popular se fia na gravação de áudio. É, portanto, uma arte contemporânea ao cinema, tendo se estabelecido no século passado. Por razões diversas, no entanto – a especulação sobre os porquês da discrepância não cabe neste artigo –, não conquistou a mesma autonomia do cinema no que diz respeito a ser considerada como forma artística válida.

Mesmo elogios comuns ao autor de canções – “a música é tão boa que poderia ser tocada em sala de concerto”, “essa letra é um verdadeiro poema” – resultam na verdade pejorativos, pois qualificam como subgênero a forma à qual o artista dedica seu trabalho. As descabidas comparações, porém, prestam-se de forma mais costumeira à acidez crítica. Assim, pergunta-se: quem é Bob Dylan para ganhar um prêmio, enquanto está vivo Philip Roth? Em nosso país, tensão similar vem se apresentando, reforçada pelo contexto político atual: valorizar o sambistinha Chico Buarque, enquanto caem no esquecimento grandes poetas e músicos, seria sintomático de nossa decadência cultural.

É por sua obra como autor de canções que Bob Dylan deve ser avaliado

Mas é difícil comparar Bob Dylan a Philip Roth, pois as artes a que se dedicaram são distintas. Quando o cotejo cai na comparação de méritos, aí é inevitável o ridículo. Desqualificar Chico Buarque lembrando a obra de Villa-Lobos ou a de Manuel Bandeira equivale a ridicularizar Usain Bolt porque ele é um franguinho de 100 metros, não daria nem pro cheiro numa maratona, esta, sim, uma forma de atletismo verdadeira, referendada pela tradição da Grécia Antiga.

Qualquer avaliação séria do mérito de uma canção deve considerar, no mínimo, seus aspectos musicais e líricos, e a forma como interagem – outros fatores também se fazem presentes, como a performance. Eis por que é uma falsa questão debater o fato de o Nobel de Literatura ter sido concedido a um músico: Bob Dylan não é um músico, pelo menos não como foi Brahms; também não é um poeta, não como Eliot.

É relevante considerar que, em língua inglesa, seria incomum a descrição de Dylan como musician, sendo mais corrente descrevê-lo como songwriter – podem checar na Wikipedia. No Brasil, a palavra equivalente, “cancionista”, é pouquíssimo usual, ficando restrita às publicações acadêmicas que buscam entender a canção popular como gênero autônomo, área de pesquisa na qual os nomes mais destacados são os de Luiz Tatit e José Miguel Wisnik.

Esse entendimento da letra de canção como algo distinto de um poema – por extensão, também o entendimento da melodia e do arranjo musical de uma canção como distintos de uma peça de música para concerto, ou mesmo de um tema de música popular instrumental – faz-se fundamental para a valorização do cancionista. Pinçar versos soltos das letras de Bob Dylan e publicá-los emparelhados, desconsiderando seu contexto musical, a performance gravada e sua posição em determinado álbum, mesmo que não seja um procedimento de má-fé, fatalmente o coloca numa posição vexatória. Mas lembremos que, como estampa de camiseta, a Mona Lisa de Da Vinci também não é arte maior, e um toque de campainha com o motivo da Quinta de Beethoven não é mais belo que um simples e eficiente dim-dom.

É por sua obra como autor de canções que Bob Dylan deve ser avaliado, sendo usados critérios típicos da avaliação de canções, e com comparações de seu trabalho sendo feitas majoritariamente, como é natural, com o de outros autores de canções. Limitando-se devidamente o âmbito, resulta óbvio o reconhecimento de sua importância e seu poder de influência sobre as gerações subsequentes de songwriters.

Os Estados Unidos da era pré-rock and roll tinham uma tradição estabelecida de cancioneiro popular como forma artística autônoma. Os letristas mais destacados – Cole Porter, Irving Berlin, Ira Gershwin, Lorenz Hart, Johnny Mercer, entre tantos outros – não eram confundidos com poetas, mas nem por isso deixavam de mostrar grande rigor em suas composições, utilizando para isso técnicas próprias da feitura de canções, distintas daquelas voltadas à elaboração de poemas para livros (a esse respeito, deve ser consultado o exemplar The Craft of Lyric Writing, de Sheila Davis).

Considerava-se, grosso modo, que enquanto um poema poderia ser apreciado no ritmo de preferência do leitor, com quantas releituras fossem necessárias para sua fruição, uma letra de canção deveria ter como objetivo ser inteligível e memorável à primeira audição. Desse modo, eram metas do bom letrista, entre outras, a unicidade de tema, a repetição esquemática, a busca de identificação direta com o ouvinte, a formação de imagens concretas e uma sonoridade agradável – assim, Lorenz Hart chamava a atenção pelo rimário virtuosístico, numa época em que as rimas perfeitas estavam fora de moda na literatura stricto sensu.

Bob Dylan, em meados dos anos 1960, ignorou completamente essas regras não escritas. Uma típica letra de Dylan é longa, com tema difuso, imagens abstratas e mudanças de ponto de vista dentro de uma mesma canção, sem preocupação com rimas perfeitas. Em suma, Dylan aproximou a produção de letras de canções das tendências da poesia contemporânea, adequando-se perfeitamente ao contexto da contracultura dos anos 1960 e se favorecendo de um momento em que a explosão de venda de discos permitiu que canções sem grande apelo radiofônico pudessem se destacar em determinados nichos. Assim, as letras difíceis de Dylan podiam ser apreciadas com a devida atenção, repetidas vezes, nos toca-discos particulares de cada fã, independentemente da boa vontade de DJs pouco ortodoxos.

Mesmo com essas qualidades, as letras de Bob Dylan não são poemas – se ele quisesse que fossem poemas, publicaria como tais. Esse fato deve ser admitido como constatação simples e verificável, sem nenhum demérito para o autor de canções em relação ao poeta. Há bons poetas e maus poetas, bons letristas e maus letristas. Como fator coincidente, ambos os ofícios lidam com versos.

Sendo Bob Dylan um cancionista, não um poeta, é digno de ganhar o Nobel de Literatura? Pode ser tomado como grande literato? Difícil de estabelecer inequivocamente. Mas se pode afirmar com segurança que Dylan criou uma obra que já tem assegurada permanência, aberta a diferentes níveis de fruição, relacionada a aspectos de seu tempo enquanto mantém caráter atemporal, com poder para emocionar distintas gerações. Bob Dylan é um grande artista, e isso é mais importante.

André Simões é jornalista, com especialização em Canção Popular e mestrado em Estudos Literários.
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