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É fácil ver quem ganha
| Foto: Evaristo Sá/AFP

No entardecer da era petista, não foram poucos os “companheiros” que, emparedados pelos fatos, desoladamente reconheceram que 13 anos não haviam sido suficientes para “preparar o Brasil para o socialismo”. Aliás, naquele célebre vídeo a bordo de um avião (no documentário Entreatos), ainda em 2002, Lula admitia francamente que sua próxima subida ao poder era um salto de precipitação: no dilema entre as décadas de fermentação exigidas pela revolução e o seu projeto pessoal, ele escolhera, sem pudor ou muita consideração pelos “companheiros”, a segunda opção.

Afinal, por que o Brasil não estava preparado? Certamente não por ser mais cristão e conservador que a França de 1789, a Rússia de 1917 ou a Alemanha de 1933. Nem por ter elites melhor capacitadas. A explicação desdobra-se na reflexão sobre nosso primitivismo, dinheirismo, imediatismo e falta de senso de comunidade que, sendo as causas do nosso atraso, acabaram também servindo como freios à revolução por aqui. A inércia das coisas brutas impassíveis de convencimento. Num povo dotado de senso de comunidade nacional bem desenvolvido, como a Alemanha dos anos 30 ou os Estados Unidos de hoje, uma revolução vai a largos passos por mera propaganda verbal e “guerra cultural”. Já no Brasil, não basta anunciar o mundo futuro em que todos terão o utópico pão-com-mortadela “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo sua necessidade”; por aqui, é necessário dar o lanche materialmente nas mãos de cada apoiador e de graça. No Brasil, não basta seduzir as massas pela mais fina propaganda; é indispensável aliciá-las a nível pessoal ao projeto de poder, se este quer realmente o poder.

Pagou caro o Partido dos Trabalhadores por querer se apoiar numa política de Estado, o Bolsa Família, em uma indireta tentativa de aliciamento da massa. Ora, políticas de Estado podem facilmente ser mantidas e ampliadas – acrescendo um décimo-terceiro, por exemplo – por adversários. O dinheiro não entra no Cartão-Cidadão com a estrelinha do Partido estampada. Na América Latina, só obtiveram sucesso os movimentos revolucionários que criaram mecanismos para reter os miseráveis pelo medo e benesses: numa mão a espada, na outra o pão, e o convencimento torna-se muito mais fácil. Nesta parte do mundo, uma migalha de pão persuade mais, angaria mais inquebrantáveis fidelidades, que todo o ardor e irradiação do mais convincente demagogo.

Mas uma revolução não pode ser movida a pão. Este não é um processo estático de compra da massa por políticos – como se iludiram levianamente os petistas –, mas uma dinâmica entre o Partido e as massas, por meio da qual estas são levadas a comprometer-se e se empenhar no projeto do Partido até o sacrifício de seus bens e suas vidas. Sem necessidade de “acreditarem” intelectualmente (ou nem sequer compreenderem em inteireza) nos objetivos do Partido, as massas são aliciadas a trabalharem pela organização, que se lhes afigura ser a única autoridade, o único poder, a fonte única de todas recompensas e eventuais punições em sua vida.

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E eis que a placidez secular de nosso berço esplêndido foi turbada entre 2013 e 2015. As classes médias e até algumas periferias se engajaram com fúria na disputa ideológica nas ruas e nas redes, culminando na aclamação, quase em primeiro turno, de um messias político à Presidência da República, ainda que sob um manto e palavreado de liberalismo. Ou seja, vejamos em retrospecto: as “jornadas de junho” de 2013 cumpriram, enfim, sua missão mais essencial. Engajar as massas indiferentes ao petismo e politizar todo o ambiente nacional na expectativa ansiosa, candente, duma incerta grande mutação. A extrema-esquerda não saiu às ruas para cobrar 20 centavos nem inculcar uma doutrina política definida; o objetivo sempre fora dar ignição a um processo histórico, que foi de fato desencadeado e cuja verdadeira essência ainda virá à tona. The issue is never the issue. The issue is always the revolution.

Vem-me à mente a conhecida sentença de Joseph de Maistre: “Não precisamos de uma contra-revolução, mas do contrário de uma revolução”. A ideologização radicalizada e açambarcante a partir de 2015 foi, em si mesma, profunda conquista do movimento revolucionário entre nós. Famílias e amizades desfeitas, divisões nas igrejas e o – inédito entre nós – puro ódio político semeado em tantos corações “cristãos”. Isso se parece com uma restauração da moral e da família? Uma regeneração da nossa sociedade? Não, este foi um largo e inconsiderado passo de ruptura revolucionária.

A revolução nasce das contradições de uma sociedade. Quanto mais intensas, melhor. Não é uma conspiração pré-fabricada na qual um pequeno grupo engabela os demais a dar-lhes o poder nas mãos. Pelo contrário, é uma explosão de energia acumulada e fermentada que, no último instante, encontra só um veio por onde escoar: a vontade de ferro do Partido.

As contradições detonantes da revolução podem ser intensificadas por lances externos, como a Primeira Guerra Mundial para a Rússia, ou pelo trabalho metódico do Partido. Entre nós, inábil em aliciar os pobres, a esquerda voltou-se mais e mais às classes médias, fermentando sua “indignação”, sua “contradição” com o statu quo oligárquico, até a explosão de 2013. Como quem liga e acelera um carro sem estar ao volante, a esquerda assistiu àquela explosão sem os meios de colher os frutos imediatos, mas sabendo que o trabalho mais necessário e improvável – ligar o carro parado, pô-lo em movimento acelerado – estava feito.

A etapa seguinte daquela explosão foi o seu aproveitamento pela chamada “nova direita”. A onda bolsonarista de 2017/2018 – capitaneada em boa medida por oportunistas ou ingênuos, única “direita” capaz de prosperar após décadas de imbecilização e pensamento único –, aquela onda da “arminha”, induziu a um peculiar aliciamento os ex-participantes das “jornadas de junho”. Foram tantos os que comprometeram e comprometem suas esperanças e até a sua reputação com o novo projeto de poder, expondo-se diante de familiares e amigos para minimizar todo esse fedor, Queiroz, Márcia, Aras, PF do Rio, Wassef, Adriano, Jefferson, milícia de Rio das Pedras, Flávio, 100 mil mortes, caso “Micheque” e negar tantos e tamanhos fatos e caluniar tantos ex-aliados. Digo um peculiar aliciamento, pois a maioria não recebe vantagens materiais (embora lideranças tenham conquistado maravilhosos empregos em gabinetes legislativos e ministeriais... sem concurso, é claro), mas também não age pelo engajamento refletido de valores e ideias, como seria próprio de verdadeiros conservadores.

Em vez de tal engajamento refletido, ocorre um complexo aliciamento psicológico, pelo qual o apoiador é levado a crer, manipulados seus temores e inseguranças, que sua vida e seus bens dependem da manutenção de uma liderança política, anjo talvez impuro, mas vingador contra o petismo e “o que está aí”, em função do qual, portanto, é medido o bem e o mal, a virtude e o crime, a lealdade e a traição. “Ou é Bolsonaro ou é o narcotráfico”, proclama-se num ato de fé metafísica, para além dos sentidos corporais. Jogado entre o medo certo e incerta esperança, desfeita sua confiança e até empatia por nomes alternativos ao líder político, posto diante da urgência de tomar partido sob a ameaça de ser um “isentão”, o apoiador é como que iniciado numa nova visão da realidade, toda feita da absoluta contradição na qual ou é Bolsonaro ou é o PT, o comunismo, a corrupção, a danação final.

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Em toda iniciação, parte-se de verdades menores, mais próximas do vulgo e do senso comum, para as verdades maiores, que dão a ciência. Nesta peculiar contrainiciação de que falamos, as verdades menores, portas de entrada do conhecimento, são os próprios valores conservadores e cristãos, que precisam ser superados no processo pela incorporação da “verdade” maior: a política – instila-se no iniciado – não é uma luta de ideias, mas de pessoas que devem ser aduladas ou anuladas conforme o interesse da tropa dos “bons”, dos patriotas. Por essa perspectiva pervertida, qualquer contemporização estará num nível inferior àquela ciência mais alta e, portanto, merece ser desprezada como “isentismo”, “morismo”, “tucanismo”, analfabetismo funcional, fraqueza, traição e até indício de homossexualismo.

Aliás, ninguém expôs melhor essa tal ciência superior que o autor da sentença: A tomada do poder não é o convite para um jantar, a composição de uma obra literária, a pintura de um quadro ou a confecção de um bordado, ela não pode ser assim tão refinada, calma e delicada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. […] é um insurreição, é um ato de violência pelo qual uma classe derruba a outra.

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Inseridos como vanguarda radicalizada à direita, tais apoiadores completam a contradição política face à esquerda radicalizada, introduzindo, pela primeira vez em nossa história, a dialética entre massas fanatizadas no centro da cena nacional. Passamos, assim, do longo sono de um conservadorismo passivo e complacente, na superfície agitado por revolucionários trapalhões e acomodados (Prestes, Goulart, Brizola, Lula, Dirceu, Dilma...), para o entrechoque – ainda não físico – entre vanguardas mobilizadas que reivindicam a posse da história. Opostas e iguais na truculência e até em certos alvos (Sergio Moro, Lava Jato, imprensa tradicional), imperturbáveis diante da corrupção e da mentira sistemática, simpáticas a aliciar os necessitados pela distribuição de migalhas, essas massas e seus líderes praticam o típico niilismo revolucionário para o qual leis, instituições, limites e a mera verdade factual não passam de entraves e entulhos do “sistema”, o qual votam de morte: a questão não é mais “se” haverá ruptura, mas “quando”, já profetizou Eduardo Bolsonaro...

Deste processo foram excluídos, é claro, os verdadeiros conservadores preocupados, em primeiro lugar, e de modo inegociável, com ideias e valores. Traídos e abandonados pelas lideranças e principais agentes políticos, é incerto que tenham um candidato presidencial em 2022.

Neste ponto compreende-se a relativa desídia da esquerda em dar efeito às tentativas de impeachment em curso. Bolsonaro está se mostrando o perfeito navio quebra-gelo da revolução, na histórica expressão de Stalin: degradando ao último grau o nome de “conservador”, gerando caos, desestabilização, miséria, mortes e um formidável vácuo de poder e autoridade. Retirá-lo neste momento é causa exclusivamente de interesse liberal-conservador e talvez da esquerda mais democrática (a parte menos influente da esquerda nacional).

Ora, quem estará em condições de vencer essa dialética radicalizada entre uma certa direita e a esquerda em bloco, numa atmosfera cerrada de mentiras e ódios, personalismos e faccionalismos, excluídos do centro da arena os conservadores autênticos e cidadãos responsáveis? Só quem tem o apoio – ou a condescendência – das instituições, sobretudo a Justiça e a imprensa, que pairam, afinal fortalecidas, sobre o entrechoque volátil dos inconsistentes. O fenômeno singular de 2018, quando um lado ideológico suplantou a barreira posta por essas instituições, só foi possível porque a direita em bloco em apoio a um presidenciável recusou a polarização radicalizada à qual era instigada pela esquerda, preferindo, ao contrário, revestir-se de um manto e palavreado de liberalismo, Estado de Direito e manutenção da constituição. Em vez de reagir com fúria e ódio flagrantes após a facada, concentrou-se no processo eleitoral, na fabricação de seu mito político e em apresentá-lo como uma solução moderada dentro da legalidade e da ordem. Mas, pelo menos desde a saída do ministro Moro, este claramente não é mais o discurso e a prática do presidente e seus apoiadores. E, entre essa direita bolsonarista e a esquerda, ora como frente única, mas sempre carregada de radicais e revanchistas, é fácil ver quem terá o apoio daquelas instituições – e, de brinde, terá o nosso futuro nas mãos.

Guilherme Hobbs é programador web e graduando em Física.

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