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Numa pequena capela próxima à cidade de Cabrobó e do Rio São Francisco, dom Luiz Flávio Cappio, bispo diocesano de Barra (Bahia), iniciava, em 23 de setembro de 2005, uma greve de fome para protestar contra a transposição do Rio São Francisco, obra federal atualmente incipiente, com participação de Batalhão de Engenharia do Exército. Após 23 dias, o bispo foi hospitalizado. A transposição do Velho Chico é tema surgido no início no Império, quando da grande seca de 1877 a 1879, que matou mais de 500 mil nordestinos. Imaginava-se que a transposição solucionaria a seca na região do semiárido.

A atitude radical do religioso inquietou o governo e trouxe dúvidas: ele teria razão ou seria um exagero? A recente publicação (2008) Toda a verdade sobre a transposição do Rio São Francisco, organizada pelo engenheiro João Alves Filho, ex-prefeito de Aracaju e ex-governador de Sergipe, aclara o lado dos opositores à transposição.

No prefácio do livro, o jurista Ives Gandra da Silva Martins lista sete violações de princípios constitucionais, entre os quais, o pacto federativo. Os quatro estados doadores e que serão prejudicados – Minas, Bahia, Sergipe e Alagoas –, que se opõem à transposição, não foram consultados. Tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) 14 ações que questionam aspectos constitucionais da obra.

O Velho Chico, em seus 2.800 quilômetros que se iniciam em Minas Gerais e tem sua foz entre Sergipe e Alagoas, tem sido objeto de agressões, como a maioria dos rios brasileiros.

No século XX, constituem a história da deterioração do rio o surgimento de mais de 500 municípios ao longo de sua calha, com lançamento de esgoto in natura e de detritos industriais, destruição das matas ciliares, contaminação por agrotóxicos e por exploração mineral e, ainda, a construção de hidrelétricas. Anualmente, 18 milhões de toneladas de material sólido são depositados em seu leito. Dos 168 afluentes do rio, 14 estão secos e muitos estão morrendo.

Ao longo do rio, cinco hidrelétricas da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco estão instaladas. A última a ser inaugurada, Xingó, a segunda maior do país, mostra as consequências do represamento do rio. Com a redução do ímpeto de suas águas, o mar está vencendo o rio, a pequena Ilha do Cabeço, com seu povoado e farol situados na foz, foram invadidos pelo mar. Atualmente só se vê a ponta do farol, afogado pelo mar. O povoado de Costinha, em área mais distante da foz, teve o mesmo destino. À jusante da usina houve significativa redução da lamina d’água, tornando a navegação difícil. O mar adentrou rio acima, as águas salobras já estão a 145 quilômetros da foz.

Os opositores da obra, conhecedores da saga do rio, temem que a utilização de 2% de suas águas para a transposição agrave as suas condições, prejudicando economicamente toda a região envolvida. Para contrapor, apresentam projeto alternativo. Em relação ao rio, a primeira preocupação é a sua revitalização, estimada em quase duas décadas de trabalho.

O projeto da transposição tem custo estimado de R$ 6,5 bilhões e prevê a construção de dois canais abertos de 25 metros de largura por 5 de profundidade, a maior parte em concreto. O canal norte levará água ao Rio Grande do Norte e Ceará e o canal leste para Pernambuco e Paraíba. Estão previstas seis barragens de captação, donde a água será bombeada até 304 metros acima. O projeto não obteve apoio do Banco Mundial, que alegou haver soluções mais econômicas para garantir o suprimento de água para o semiárido.

A população rural sem água, a quem supostamente se destina o projeto, é calculada em 5 milhões de pessoas, das quais de 500 mil a 700 mil serão atendidas. O volume de água a ser retirado do rio, para o padrão de consumo rural, daria para um consumo de 100 milhões de pessoas, segundo os críticos da obra.

A proposta alternativa, lastreada em dados reais, é baseada em três pontos principais: a interligação dos açudes existentes entre si e desses para o abastecimento dos povoados, através de adutoras; trazer água do subsolo à superfície, através de poços e, daí, encaminhá-la aos povoados e cidades de médio porte; finalmente, para as pequenas propriedades rurais esparsamente distribuídas, utilizar uma solução milenar, as cisternas. Para solucionar o problema de Campina Grande, única cidade grande do semiárido carente de água, seria necessário fazer adutora específica de um aquífero localizado a 100 quilômetros, no litoral paraibano. A opção, segundo os propositores, custaria pouco mais da metade do custo estimado para a transposição, ou R$ 3,96 bilhões.

A conclusão é que a necessidade da ampliação do debate em torno do assunto, estabelecendo amplo contraditório, para que as decisões sejam tomadas com efetivo apoio técnico-científico. Tendo ou não razão os opositores da transposição do Velho Chico, o bom senso indica que antes de qualquer proposta de utilização das águas, a revitalização do rio deve ser a prioridade.

José Henrique do Carmo é mestre em Desenvolvimento Econômico e professor aposentado de Economia Internacional da UFPR.

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