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Se os governos não se unirem e não forem à fonte que alimenta a corrupção e o crime, intervindo nas atividades econômicas e secando o dinheiro movimentado pelos milicianos, a juíza terá sido apenas mais uma vítima de interesses contrariados, e outras se seguirão

O assassinato da juíza Patrícia Acioli foi uma ousadia do crime organizado, mas não foi o primeiro entre magistrados que se tornaram alvos desse poder paralelo instalado e entranhado nas estruturas do Estado. No Rio de Janeiro, a morte de Patrícia foi um recado brutal aos operadores do Direito, ao próprio Judiciário, enfim, que não se deixaram contaminar pela corrupção. Mas, lembremos que, há poucos anos, também chocou o país, e continua impune, o atentado que vitimou o juiz Alexandre Martins Filho, em Vitória. E a emboscada contra o juiz corregedor Antônio José Machado, no interior paulista. Pelo menos cem magistrados, segundo o Conselho Nacional de Justiça, estão atualmente sob ameaça de criminosos.

Embora gravíssima, não causou surpresa a ninguém a descoberta que as balas que mataram a juíza de São Gonçalo pertenciam à Polícia Militar. O comando da corporação já reconheceu o envolvimento de policiais no assassinato e informou que nada menos que 91 de seus homens respondem por homicídios no município. O deputado estadual Marcelo Freixo, que comandou uma corajosa CPI das Milícias, responsável por levar à prisão alguns de seus integrantes – um deputado estadual e um vereador, entre eles – anda com seguranças 24 horas e está também ameaçado de morte.

Freixo já foi informado que seria um "defunto caro", como o esquema das milícias chama aqueles cuja morte atrairia uma repercussão indesejável, com potencial prejuízo aos negócios ilícitos que movimenta. Os 21 tiros de emboscada que tiraram a vida da juíza e provocaram a reação das mais altas esferas do Judiciário mostraram, para ele, que o crime organizado se dispôs a pagar o preço da ousadia e impor sua própria sentença a quem o contraria. No Rio, mais um limite foi rompido na conduta desses bandidos.

As chefias da área de segurança vêm procurando faxinar seus quadros, processando e expulsando policiais criminosos, mas é preciso ir fundo nessa tarefa. Tal como na máfia, os tentáculos da corrupção formam uma estrutura complexa em diversos setores da administração pública, permitindo inclusive o gerenciamento dos negócios de dentro das penitenciárias. Um Estado leiloado dentro do Estado. Com projeto de poder, domínio de territórios e representação política até no Congresso Nacional.

A escalada dos crimes é um grito de alerta para as autoridades constituídas de que, sem uma política consistente, inteligente e articulada entre os poderes municipal, estadual e federal, as organizações criminosas continuam à vontade para corromper, extorquir, matar e continuar lucrando com a exploração das comunidades dominadas. A liberdade com que agem dá a medida da corrosão do poder público, infiltrado por interesses ilegais. Abrem fissuras graves no Estado Democrático de Direito.

Se os governos não se unirem e não forem à fonte que alimenta a corrupção e o crime, intervindo nas atividades econômicas e secando o dinheiro movimentado pelos milicianos, a juíza terá sido apenas mais uma vítima de interesses contrariados, e outras se seguirão. É preciso retomar, para o Estado, os territórios das milícias, como se fez com o tráfico de drogas. As cooperativas de vans e a distribuição de gás nessas áreas são duas conhecidas fontes de lucros dessas organizações sobre as quais o poder público pode agir, se tiver vontade política. Na estrutura policial, melhorar a formação dos agentes e seus salários – além, naturalmente, de fortalecer e dar mais independência às corregedorias e ouvidorias – será outro passo importante para que magistrados como Patrícia Acioli e parlamentares como Freixo possam trabalhar por uma sociedade melhor sem ameaças pesando sobre suas cabeças.

Wadih Damous é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Rio de Janeiro.

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