| Foto: Alesia17/Free Images

Quando a minha filha mais nova fez 2 anos, aprendeu a dizer “é meu”. Ela vê o brinquedo que deseja, pega-o com as suas mãozinhas, traz para o peito, olha severamente para o interlocutor e sentencia: “É meu!” Ela compreendeu como verbalizar a apropriação. Ela quer algo, toma-o e declara a sua propriedade. O doce? É dela. O celular na minha mão? É dela. Eu? Obviamente sou dela também.

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No início, achei um amor. Os pais se derretem com esses sinais de evolução, essas microdemonstrações de tirania (as mesmas que, no filho dos outros, geralmente qualificamos como decorrentes de uma má educação por pais relapsos). Mas, por mais que façamos beicinhos de aprovação, em algum momento faz-se necessário ser pai e contrapor aquele argumento de propriedade. Filha, não é “teu”, é “meu”. Ou “é nosso”. Ou “é dela”. Ou os mais complexos “não é de ninguém” e “é de todos nós”.

E, assim, jogamos a criança num mar de incerteza; no mundo dos conceitos fluidos e antinaturais. No pequeno olhar, onde havia a certeza da posse, passa a existir a vagueza da incompreensão, a raiva pela desapropriação e, por fim, a firmeza da resistência.

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Eu nunca expliquei para ela o que significava “é meu”. Foi um conceito que ela adquiriu sozinha, pela mera observação da prática ao seu redor. Demorei umas duas semanas explicando o significado de “é teu”. Não é tão difícil, pois é apenas um “é meu” ao contrário. Claro que, às vezes, ela não concorda com o “é teu” ou finge se esquecer que ele existe, mas isso é outra história.

Eu nunca expliquei para minha filha o que significava “é meu”. Foi um conceito que ela adquiriu sozinha

Estou, contudo, há mais de um mês tentando explicar o significado de “é nosso” e nem sequer sei por onde começar “não é de ninguém” e “é de todos nós”. São conceitos difíceis, abstratos e sofisticados, que foram desenvolvidos para mentes um pouco mais elaboradas. E isso me faz pensar um pouco sobre o momento político que estamos atravessando.

Não vou cair na armadilha óbvia e primária da dicotomia entre esquerda e direita, capitalismo e socialismo ou qualquer outros desses rótulos fáceis e mal-compreendidos (se o leitor precisar me rotular, se não puder conviver nas zonas cinzas e sentir absoluta necessidade de me colocar em algum compartimento mental identificado com grandes etiquetas, pode escrever “capitalista solidário”. Não, isso não existe!, acusaram alguns amigos próximos que leram este texto. Acho que existe, sim, embora seja uma espécie em extinção pelo desuso). Vou dizer, apenas, que a capacidade de se apropriar das coisas de que necessitamos é inerente e foi essencial para a sobrevivência dos primeiros humanos. A capacidade de dividir, porém, permitiu nossa evolução em sociedade. A segunda veio quase junto, mas, mesmo assim, não de forma concomitante com a primeira.

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Para uma sociedade sair da barbárie (ou para não retornar a ela) e se desenvolver são necessários sentimentos e ideias coletivas de empatia, alteridade e solidariedade. Assim como educamos nossas crianças a não fazer mal aos outros, a ajudar o próximo e a respeitar as diferenças, temos de fazer um exercício conjunto e adulto destas qualidades.

Esses sentimentos e ideais traduzem-se em providências simples e com as quais a grande maioria concorda. Não deixar outros morrerem de fome. Educar. Permitir que outras pessoas saiam da ignominiosa pobreza. Estabelecer uma igualdade de direitos básicos entre todos. Respeitar as minorias. Respeitar as diferenças individuais, e assim por diante. Outras providências ainda se fazem necessárias, mas não são tão simples. Como tributar grandes fortunas e ou heranças, por exemplo, a fim de impedir que famílias vivam gerações com base exclusivamente na renda. Ou para evitar que 1% da população tenha a riqueza equivalente à de 50%.

Aí, a discussão é obliterada pela falta de entendimento. E, não bastasse a incompreensão, aqueles a quem não interessa essa conversa jogam sobre ela um manto de ódio e de medo. Voltam os rótulos. Óbvio que nada de produtivo pode ser extraído de um debate público nestes termos.

E continuamos todos assim, com nossas coisas junto ao peito, defendendo de forma infantil o que “é meu”.

Daniel Nonohay é juiz do Trabalho.