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No dia 13 de julho de 1990, o Brasil deu um importante passo em direção à proteção integral da infância e da adolescência ao sancionar a Lei nº 8.069, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A legislação, fruto de intensos debates democráticos no período pós-Constituição de 1988, consolidou o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, direcionando a formulação e a execução de políticas públicas voltadas à promoção dos direitos deste grupo socialmente vulnerabilizado.
Agora, completados 35 anos de vigência, o Estatuto da Criança e do Adolescente consolidou-se como uma verdadeira carta de direitos, reafirmando sua importância histórica e, ao mesmo tempo, desafiando o poder público e a sociedade a efetivar plenamente os compromissos ali firmados.
De todo modo, mesmo tendo se passado 30 anos de sua promulgação, os números mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024) revelam que a violência e a negligência contra a infância continuam como um desafio estrutural. Os dados demonstram que, nos últimos anos, houve um agravamento generalizado das violações contra a infância, contrariando a expectativa de progressiva consolidação dos direitos previstos no Estatuto.
Para ilustrar essa afirmação, um recorte nacional revela que os casos de abandono de crianças cresceram 20%, com destaque para o aumento de 49% nos registros de abandono material, um indicativo direto das dificuldades enfrentadas por famílias em situação de extrema vulnerabilidade. Esses indicadores refletem, em grande medida, a fragilidade econômica vivenciada por parcela expressiva das crianças e adolescentes no país.
Em um contexto de rápidas transformações sociais e, sobretudo, tecnológicas, a infância brasileira também é impactada por dinâmicas inéditas, especialmente aquelas mediadas pelo ambiente digital
A exposição destes menores a contextos de violência doméstica também amplia significativamente os riscos, refletindo um crescimento de 31% nos casos de maus-tratos, que englobam desde agressões físicas, psicológicas e até situações de negligência grave. A curva ascendente desses dados se repete em diferentes faixas etárias, evidenciando que o ambiente violento não é pontual ou episódico, mas estrutural e contínuo.
Em outras palavras, as crianças são submetidas à negligência e à violência desde os primeiros anos de vida e tendem a permanecer desprotegidas ao longo de toda sua trajetória escolar e familiar, o que intensifica os impactos negativos.
Esse cenário torna-se ainda mais evidente no estado de São Paulo. Embora conte com uma rede de proteção mais estruturada, o estado apresenta taxas superiores à média nacional nos registros de abandono de incapaz e maus-tratos. Esse aparente paradoxo pode ser explicado, em parte, pela maior capacidade local de identificar, registrar e qualificar essas violações. Ou seja, quanto mais desenvolvido e sensível é o sistema de proteção, mais visível se torna a real dimensão das situações de negligência, abandono e violência.
A leitura desses números, portanto, evidencia não apenas a magnitude das violações, mas também as fragilidades estruturais na implementação das diretrizes do Estatuto. Se, em estados com maior capacidade de registro, os dados já revelam um quadro preocupante, é razoável concluir que a realidade nacional seja ainda mais crítica e subnotificada. Soma-se a esse cenário os desafios históricos já consolidados – como a pobreza, a negligência e a violência doméstica – agora agravados por novos fenômenos contemporâneos, que adicionam complexidade à agenda de proteção da infância e impõem novas exigências à efetivação plena do ECA.
Em um contexto de rápidas transformações sociais e, sobretudo, tecnológicas, a infância brasileira também é impactada por dinâmicas inéditas, especialmente aquelas mediadas pelo ambiente digital. A conectividade, embora traga inegáveis benefícios de informação, acessibilidade e sociabilidade, ela também impõe riscos significativos. Nunca foi tão limitado o controle sobre a exposição, o comportamento e as interações de crianças e adolescentes no ambiente virtual.
Criado para garantir a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral dos menores, o Estatuto da Criança e do Adolescente deve hoje ser interpretado também à luz das relações digitais. O novo desafio então é atualizar sua interpretação sem descaracterizá-lo, garantindo que na sua essência, a proteção integral das crianças e adolescentes, também seja extensiva ao ambiente virtual.
Nessa esteira, foi sancionado o PL 2.628/2022 – conhecido como “ECA Digital” ou PL do combate à ‘adultização’ de crianças nas redes sociais – que estabelece regras mais rígidas para as plataformas digitais na proteção do público infantojuvenil. A nova lei determina às plataformas digitais a adoção de mecanismos de verificação de idade, ferramentas de supervisão parental e controle de acesso, além da obrigação de remover, de forma imediata, conteúdos considerados prejudiciais.
Ainda nesse sentido, o Brasil tem demonstrado avanços concretos na atualização jurídica voltada ao enfrentamento dos desafios contemporâneos da infância no ambiente digital. Outro exemplo recente foi a promulgação da Lei nº 15.100/2025, que regulamenta o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais por estudantes em instituições de ensino da educação básica. A norma proíbe o uso de dispositivos como celulares durante as aulas, com o objetivo central de salvaguardar a saúde física, psíquica e mental de crianças e adolescentes diante dos efeitos danosos do uso imoderado das telas. A nova legislação supre uma importante lacuna normativa ao atribuir às instituições de ensino a responsabilidade de promover ações educativas e estabelecer diretrizes para o uso consciente e controlado desses dispositivos.
Já a Resolução 245/2024, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), impõe às empresas de tecnologia o dever de desenvolver produtos digitais orientados pela proteção integral da infância. A norma impõe às empresas de tecnologia o dever de desenvolver produtos digitais orientados pela proteção integral da infância, proibindo, por exemplo, o uso de dados pessoais de menores para segmentação comercial e exigindo a implementação de mecanismos de verificação etária, moderação de conteúdo e canais de denúncia acessíveis e eficazes, articulando a responsabilidade corporativa do setor com os princípios já tutelados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
No mesmo sentido, o anteprojeto de reforma do Código Civil, atualmente em discussão na Comissão de Juristas no Senado Federal, propõe avanços importantes no reconhecimento da personalidade digital e na proteção de dados sensíveis. Um dos eixos centrais é a tutela de crianças e adolescentes no ambiente virtual, com a previsão de que conteúdos voltados a esse público observem linguagem apropriada, respeito à sua condição peculiar de desenvolvimento e garantia de privacidade. O texto também reforça o dever de cuidado das plataformas e veda a exploração econômica de dados de menores, alinhando-se ao princípio da proteção integral consagrado pelo ECA.
Diante desse panorama, os 35 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente reafirmam sua relevância histórica e sua vocação normativa de garantir proteção integral à infância. No entanto, os desafios atuais – especialmente os impostos pelo ambiente digital – exigem que o ECA seja permanentemente interpretado à luz da realidade contemporânea. A persistência de violações graves – causadas pela pobreza estrutural, pela negligência e pela violência – revela que os compromissos assumidos ainda não se traduziram em garantias efetivas.
Ao mesmo tempo, as transformações tecnológicas impõem novas camadas de complexidade, exigindo que a proteção integral alcance também os ambientes digitais. A articulação entre o ECA, os novos marcos regulatórios e a proposta de reforma do Código Civil sinalizam um caminho. Mas será a atuação coordenada do Estado, da sociedade e das instituições que poderá, de fato, fazer da infância e da adolescência uma prioridade real – e não apenas normativa.
Daniela Justino Dantas Martelli é especialista em Direito das Famílias e Sucessões e em Direito Contratual e Direito Processual Civil; Lucas Gabriel Cabral de Castro é especialista em Planejamento Patrimonial e Sucessório. Ambos são advogados no escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



