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Ecos do passado na cultura do cancelamento
| Foto: Unsplash

Riscar nomes é o passatempo predileto de muitos nas redes sociais. E essa história vem de muito tempo – e está indo longe demais. Hatshepsut foi uma mulher faraó no Egito Antigo. Desafiando as normas sociais da época, Hatshepsut conseguiu ascender ao poder e mantê-lo por duas décadas. Mas após sua morte, ela passou por aquilo que podemos chamar de uma das primeiras campanhas de cancelamento da história. Seu nome foi literalmente riscado das inscrições nos templos e palácios e sua memória foi quase completamente aniquilada. Tutmés III só fez isso porque, como faraó, ele era considerado um deus, e como um deus ele acreditava ter o direito de reescrever a história.

Algumas teorias sugerem que Moisés, o profeta bíblico, pode ter vivido no Egito durante o reinado de Hatshepsut e que ela poderia até mesmo ter sido a princesa que o adotou, conforme mencionado na Bíblia. Se essa conexão for verdadeira, talvez um texto bíblico seria capaz de nos esclarecer o verdadeiro sentimento por trás da cultura de cancelamento.

Após descer o Monte Sinai com as tábuas da lei em suas mãos, Moisés se depara com o povo de Israel prostrado em adoração diante de um bezerro de ouro. Em sua fúria, Deus diz ao profeta que destruiria o povo e construiria uma nova nação a partir de Moisés. Este, porém, intercede pelo povo e diz: "Agora, eu te imploro, perdoa-lhes o pecado; se não, risca o meu nome do teu livro que escreveste" (Êxodo 32:32). O ato de riscar nomes mencionado por Moisés faz referência a uma prática do Egito Antigo que ele conhecia, e talvez tenha testemunhado, caso sua conexão com Hatshepsut seja legítima. Respondeu o Senhor a Moisés: “Riscarei do meu livro todo aquele que pecar contra mim” (Êxodo 32:33). Parece que riscar nomes de pessoas é uma prerrogativa divina, seja no Egito Antigo ou no Antigo Israel.

Contra quem pecamos quando postamos uma opinião impopular na internet? A quem devemos orar: perdoe as nossas ofensas? Que panteão gigantesco, anônimo e intolerante desagradamos a tal ponto que exigem de nós pedidos públicos de perdão, penitência, ostracismo, e ainda assim perdemos emprego, reputação e honra?

Um dos profetas da literatura moderna, Ray Bradbury, imaginou um futuro assustador em sua obra Fahrenheit 451. Nela vemos retratada uma sociedade distópica onde os livros foram proibidos. O livre pensamento, as artes, a literatura, foram rejeitados. Os “bombeiros” não mais apagam incêndios. Sua missão é queimar livros. Porém, o elemento mais assustador do livro, aquilo que nos faz mais refletir, é de onde partiu tamanha censura. As pessoas pararam de ler livros, pararam de se expor a novas ideias e se tornaram temerosas do pensar diferente e do próprio pensar, então decidiram que viveriam melhor se ninguém mais fosse livre para pensar.

A cultura de cancelamento é uma tentativa de controle de narrativa, nada além disso. Uma “sanitização” de discursos e até de pensamentos, como bem apresentou Linda Jonsson, em sua tese de mestrado  na Södertörn University. Esse controle social, segundo ela, conduziria a uma sociedade menos tolerante e inclusiva, onde as pessoas têm medo de expressar suas opiniões e participar de debates públicos.

O cancelamento, como o vemos hoje, não é uma manifestação política por parte de um governo, como no caso da censura. Nem é uma revolta contra um indivíduo que praticou um crime contra a honra, como no caso da responsabilização judicial. No cancelamento, não há necessariamente um crime, e sim, na maioria das vezes, apenas uma opinião. O que o indivíduo disse ou fez na internet não foi algo sério o suficiente para exigir intervenção policial. Não há vítimas, pois não há crime. A vítima, na verdade, é o indivíduo que falou ou fez algo que ofende a cultura predominante dos usuários das redes sociais, e isso é o suficiente.

Nunca sociedade onde cada ser humano se considera seu próprio deus, assim como divindades, ele cria suas próprias leis e escreve-as não mais em tábuas de pedra, mas em silício.

Jurandir Gouveia, formado em Teologia e especialista em Educação, atua como tradutor, editor e ghostwriter e mantém um canal sobre storytelling.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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