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Educação matemática “crítica” e o fracasso do ensino de matemática
| Foto: Pixabay

Poucas pessoas estariam dispostas a negar a importância da matemática, nas ciências, na tecnologia e na vida quotidiana dos cidadãos. A matemática é importante, e não é difícil entender por quê. Ao contrário das ciências naturais, que estudam diferentes aspectos do mundo natural que nos rodeia, a matemática não se interessa tanto pelas coisas em si, mas pelas relações que elas mantém entre si, quaisquer que sejam essas coisas. Essas podem ser relações quantitativas, espaciais ou quaisquer outras. Como tudo o que existe existe em relação com outras coisas, a matemática se aplica a tudo, pois tem sempre algo a dizer sobre as relações entre si das coisas que nos interessam, sejam elas o que forem.

A matemática é uma ciência antiquíssima, praticada e acumulada desde milênios antes de Cristo ininterruptamente até hoje, e quase todos os povos e civilizações contribuíram para o seu desenvolvimento, primeiro os egípcios e os povos mesopotâmicos da mais remota Antiguidade, depois os gregos, os chineses, os indianos e os árabes, vários países europeus a partir do final da Idade Média, e enfim o mundo todo. Até a civilização Maia produziu matemática, e isso sem nenhum contacto com as tradições matemáticas da Europa, Oriente Médio ou Ásia. É difícil encontrar hoje uma nação, por menor que seja, por pobre que seja, onde a matemática não seja praticada e não esteja sendo criada. Apesar dessa diversidade, não existem várias matemáticas, mas uma só – ainda que haja estilos nacionais e mesmo pessoais de matemática –, com essencialmente a mesma linguagem, os mesmos conceitos, os mesmos métodos. A confraria dos matemáticos cobre o mundo todo.

O Brasil é um importante produtor mundial de matemática. Prova disso é a posição que ocupa na classificação dos países da União Internacional de Matemática (IMU na sigla em inglês), no topo, no grupo 5, de elite, em que figuram apenas 10 países, Brasil, Canadá, China, França, Israel, Itália, Japão, Rússia, Reino Unido e EUA (www.mathuniom.org).

Por outro lado, vergonhosamente, os estudantes brasileiros do ensino fundamental e médio têm um dos piores ensinos de matemática no mundo. Isso aparece claramente nos exames do Pisa, que testam as habilidades em matemática, leitura e ciências de jovens de 15 anos de quase uma centena de países (79 em 2018). Nosso desempenho é pífio, entre os piores nas três matérias. 46% dos nosso adolescentes não atingiram a proficiência mínima em matemática no último exame.

Por que tal disparidade? Uma explicação possível é que nossos matemáticos profissionais evitam envolver-se com o ensino básico de matemática, por desprezá-lo ou por não se sentirem capazes. Deixam a tarefa aos professores de matemática que, porém, além de malformados, mal pagos e desprestigiados são vítimas fáceis de um grupo de predadores autointitulados educadores matemáticos. Essa disciplina, a Educação Matemática, é bastante difundida no Brasil, mas, ao contrário do que o nome parece indicar, ela não está muito interessada em descobrir como melhor ensinar matemática. Seu objetivo é outro. Para apreciá-lo é preciso localizá-lo num contexto mais amplo.

Tudo começou na França nos anos 60 com a invenção do pós-modernismo por Jacques Derrida, Jean-François Lyotard e Michel Foucault. Não é tarefa fácil resumir em poucas palavras o que seja o pós-modernismo, mas tentemos. Primeiro, considere a seguinte afirmação: o mundo é como é e se eu digo que ele é como é, ou que não é como não é, eu digo a verdade. Contrariamente, se digo que é o mundo é como ele não é ou que não é como é, eu digo a falsidade. Óbvio, diriam todos, mas não os pós-modernistas. Eles não admitem a existência de uma realidade independente, que é como é, mas apenas de realidades “construídas”, e realidades se “constroem” por meio de “discursos”, modos de falar que dependem da perspectiva cultural adotada. A cada cultura ou grupo cultural o seu discurso, a cada discurso a sua realidade e a sua verdade. Discursos não são inocentes, porém, eles respondem a interesses do grupo e as verdades que constroem estão a serviço desse grupo. Discursos são instrumentos de poder. Não é assim tão cru, mas é por aí.

Helen Pluckrose e James Lindsay no livro Cynical Theories (Teorias Cínicas, Swift Press, 2020) identificam dois princípios basilares do pós-modernismo, a saber: (1) o princípio de conhecimento ou um “pessimismo radical quanto a se conhecimento e verdade objetivos são obteníveis e um compromisso com o construtivismo cultural” e, (2) o princípio político ou “uma crença que a sociedade é formada por sistemas de poder e hierarquias que decidem o que pode ser conhecido e como”. Uma das vítimas dessa ideologia é a concepção modernista que a ciência é um corpo articulado de conhecimento objetivo sobre a realidade objetiva. Para o pós-modernismo, a ciência é um discurso culturalmente construído (princípio de conhecimento) que serve como instrumento de poder da cultura que a constrói (princípio político).

A matemática não poderia passar incólume por essa tsunami de revisionismo epistemológico. Embora cientistas e matemáticos praticantes não levem a sério essa reavaliação do valor do conhecimento científico e prossigam com o seu trabalho como sempre, muitos dos que ensinam ciência e matemática caem na falácia de confundir o fato trivial que a produção do conhecimento é um evento cultural com o erro que o conteúdo conhecido é culturalmente determinado. E assim, ao se arvorarem em paladinos da luta por justiça social, indispõem-se contra a “ciência “tradicional” (vista como escolástica, patriarcal, opressora, mantenedora da ordem social injusta), promovendo um conhecimento “alternativo” e supostamente libertador produzido pelos grupos “oprimidos”.

Nós já vimos essa história antes com Paulo Freire, que embora misturando um pouco de tudo na sua, digamos, epistemologia, de Marx a Husserl, insere-se confortavelmente na vertente pós-modernista. Para ele, não basta simplesmente ensinar a ler, uma vez que o poder dominante usa essa oportunidade para impor o seu discurso aos dominados, há que alfabetizar substituindo o discurso dos opressores pelo discurso dos oprimidos (e que ninguém se surpreenda que o discurso do oprimido seja tão parecido com a ideologia do teórico). Assim, sai de cena o “Ivo viu a uva” das cartilhas, já que os Ivos pobres nunca veem uva nenhuma, e entra o libertário “Evo viu a mais-valia” ou algo parecido.

A etnomatemática

O correspondente da ideologia paulofreiriana na matemática responde pelo apelativo de etnomatemática. À primeira vista, pelo nome, pode-se pensar em algo inocente como uma etnografia da matemática. Mas não, ela se apresenta como uma radical mudança de perspectiva em prol da reavaliação e revalorização do “conhecimento matemático” de culturas oprimidas, da África, das periferias das grandes cidades, das favelas, dos campos, contra a matemática “oficial” da cultura dominante e seu poder opressor.

Uma das figuras centrais da etnomatemática no mundo é o professor de matemática brasileiro Ubiratan D’Ambrósio. É instrutivo ouvi-lo. Numa entrevista ao Diário do Grande ABC (Diário na Escola) de 31/10/2003, ele afirma que “um médico de cultura indígena não usa um ecocardiograma para enxergar o que se passa no coração do paciente, ele usa elementos de outra natureza. Essa matemática não é menor que a outra, é adequada àquele ambiente.” E mais além, “a criança não deixa de ter comida e hospital por não ter matemática. Os problemas fundamentais da sociedade são de ordem social e política.” Aprender matemática, ele acredita, não melhora as chances de um jovem encontrar um bom emprego, pois “a causa do desemprego não está na matemática e sim na organização perversa da sociedade”. Logo, pode-se inferir, o ensino de matemática não deve ter como foco ensinar matemática, mas reformar a sociedade. Por isso, eles não usam nunca o termo ensino de matemática, já que o objetivo não é esse, mas educação matemática, ou seja, a matemática como instrumento de “educação”, que para eles significa sempre “conscientização” e indução à “ação transformadora”. Em suma, a matemática como ideologia.

No seu artigo de sugestivo título Etnomatemática, justiça social e sustentabilidade (Estudos Avançados 32 (94), 2018) D’Ambrósio menciona com aprovação um estudante seu que depois de investigar a “matemática” dos marceneiros, decidiu utilizá-la na formação de licenciandos em matemática, lembrando que licenciandos são os futuros professores de matemática do ensino médio. O problema disso tudo deveria ser óbvio, práticas matemáticas não são conhecimento matemático, pois não vêm acompanhadas de uma justificação. Conhecer não é só saber, mas também saber por quê. E assim, ensinar práticas não é ensinar matemática, a menos que elas sejam inseridas na matemática propriamente dita, a matemática “acadêmica”, e devidamente reelaboradas.

Nesse texto, D’Ambrósio critica explicitamente o ensino tradicional de matemática como instrumento de manutenção da desigualdade social, cujas origens ele identifica na organização social em termos de “uma estrutura de poder e de governança baseada na dicotomia entre ‘homem opressor’ e ‘ homem oprimido’”. A superação dessa situação, ele afirma, exige um “novo homem”. Segue-se uma longa citação de Paulo Freire.

Mais adiante, ele diz: “Como educadores, nossa missão é preparar gerações para um futuro sem fanatismo, sem ódio, sem medo e com dignidade para todos [...] Os nossos objetivos devem ir além de justiça social e dignidade para a espécie humana, devemos pensar na própria sobrevivência da espécie, que está ameaçada por uma colapso social”. Nobres objetivos, sem dúvida, que parecem, entretanto, desprezar o simples ensino eficiente de matemática para que os cidadãos tenham condições de agir no mundo como melhor lhes aprouver.

A oposição entre matemática “acadêmica”, a matemática supostamente ocidental, europeia e branca do colonizador que nega as matemáticas africana, asiática, índia, e essas e outras formas de matemática fica mais explícita em Etnomatemática – Cultura, Matemática, Educação de Paulus Gerdes (Moçambique, Reedição, 2012). À matemática do colonizador, Gerdes opõe a sociomatemática, a matemática espontânea, a matemática informal, a oral, a matemática do oprimido, a matemática não-estandardizada, a escondida ou congelada e a matemática popular.

Em suma, a etnomatemática parece negar propositalmente ao estudante acesso adequado à única matemática que há, essa matemática “acadêmica” tão vilipendiada que lhe daria a posse de um potente instrumento cultural, para lhe oferecer no lugar apenas práticas matemáticas e protomatemáticas com pouca ou nenhuma relevância na sociedade onde ele irá viver. Ela prefere fazer dele um agente de transformação social em prol de um ideal de sociedade antes que simplesmente alguém que conhece matemática e pode fazer uso dela como bem entender.

Mas há coisas ainda piores.

Os anos 80 e 90 viram, na Europa e nos EUA principalmente, uma evolução e radicalização do pensamento pós-moderno com as chamadas Teorias Críticas, entre elas a teoria pós-colonial, a teoria queer, a teoria racial crítica, o feminismo radical, os estudos de gênero e os estudos de desabilidade e de gordura ou obesidade (disability and fat studies) em que o princípio de conhecimento e o princípio político citados atrás reinam soberanos (veja o Cynical Theories mencionado acima).

Matemática "Crítica"

Claro que havia também de surgir uma Educação Matemática Crítica – a palavra “crítica” nesse contexto é sempre um sinalizador a se notar, são os mesmos temas, motivos e variações exaustivamente repetidos. Em vez de explicar o que seja isso, melhor exemplificar. Aqui vão, portanto, algumas citações pescadas em dezenas de contribuições à oitava Conferência Internacional de Educação Matemática e Sociedade realizada em Portland, Oregon, EUA, em junho de 2015 e publicadas no Proceedings dessa conferência. Os textos estão em inglês, as traduções são minhas:

Os títulos já são suficientemente sugestivos: “Tecendo justiça social na matemática elementar”, “Incerteza, imaginação pedagógica, raciocínio explorativo, justiça social e crítica”, Indigenização do currículo matemático: uma experiência em evolução”, “Para uma perspectiva pedagógica descolonizada para a educação do professor de matemática”, “Uma contribuição crítica à maneira de Derrida para teorias sociais na pesquisa de educação matemática” (Derrida e Foucault são sobejamente citados em grande número dos artigos).

Este aqui não esconde o jogo: “Jogando enquanto se muda o jogo: ensinando a matemática da justiça social”. Há também interseções da educação matemática crítica com outras teorias críticas, pois, afinal, o “intersecionismo” é uma característica dessas teorias: “Desafiando ‘apteísmo’ (ableism) na matemática da escola secundária”. Cabe uma explicação. Apteísmo – ableism no neologismo inglês – é um termo dos estudos de desabilidade que se refere à “construção” do corpo apto como superior ou mais desejável que o corpo com alguma desabilidade. A autora, Rossi D’Souza, indiana, afirma que argumenta em favor “de uma compreensão expandida de matemática para a justiça social”. Os exemplos se sucedem, eis algumas citações mais longas:

“Este projeto irá promover insights genealógicos: como o conhecimento matemático foi construído histórica e socialmente e é usado como parte da tecnologia de poder. Esse entendimento da relação entre conhecimento matemático como histórica e socialmente construído e tecnologia de poder abrirá novos campos de investigação em educação matemática [...]. Este projeto irá ajudar cidadãos a conectar conhecimento matemático com sociedade e suas relações de poder” (Critical Mathematical Competence for Active Citizenship within the Modern World, Sikunder Ali, Noruega).

“Práticas matemáticas são re-criadas em condições sociais e culturais e são portanto políticas. Essas práticas estão ligadas em rede com outras práticas. Poder não é uma característica intrínseca e permanente de participantes ou práticas, mas é situacional, relacional, e em constante transformação [...] Assim, todos os participantes estão implicados na construção e na circulação de poder e práticas matemáticas são o lugar tanto de reprodução quanto de resistência.” (Researchers and Researched as Other within Socio-p/Political Turn, Annica Andersson & Kate le Roux, Suécia e Africa do Sul).

“Portanto, verdades tornam-se uma formação discursiva e existem diversas regras para o que é considerado verdadeiro e falso. Em outras palavras, há regimes de conhecimento determinando o que é aceito como significativo e verdadeiro e o que não é.” (Shaping a Scientific Self: A Circulating Truth within Social Discourse, Melissa Andrade-Molina & Paola Valero, Dinamarca).

“Baseando-se em teoria crítica e epistemologias feministas [mais um exemplo de intersecionismo, minha nota], o propósito desta pesquisa é examinar o material curricular de matemática através de duas questões: ‘O que é valorizado?” e “Conhecimento para quem?’ Os resultados indicam que textos de matemática contém múltiplos exemplos de problemas que reificam a hegemonia, a exploração de pessoas e um marcado desprezo pelo ambiente. Este artigo inclui formas pelas quais educadores matemáticos podem reconceptualizar os textos de matemática como inextrincavelmente ligados à reprodução cultural e, além disso, usar esses insights para erigir modos em que educadores matemáticos podem abalar as correntes narrativas e substitui-las por perspectivas mais imparciais, sustentáveis e críticas.” (Education for Whom? Word Problems as Carriers of Cultural Values, Anita Bright, EUA).

Os textos se sucedem nessa monótona toada em que a matemática que todos conhecemos e que todos precisamos dominar num nível aceitável de competência para bem exercer nossa cidadania, aparece antes como um vilão, um vetor de dominação cultural, que como um veículo de inserção no mundo. Os educadores matemáticos “críticos” desprezam o ensino da matemática própria e vera, que, a depender deles, creio, seria certamente abolida do currículo escolar, substituída por uma “matemática” popular, supostamente comunitária, libertária e instrumental na luta por justiça social.

Para terminar, vale a pena sofrer mais um exemplo, que se destaca pelo absurdo. Os “estudos de obesidade (fat studies)” pregam que a obesidade, entendida como um fator potencial de risco à saúde, é (até ela) uma construção social para exercer poder e oprimir os obesos. No artigo “The Mathematical Formatting of Obesity in Public Health Discourse”, os canadenses Jeniffer Hall e Richard Barwell identificam a matemática como um dos atores na produção cultural do conceito de “obesidade” – que, para eles, não passa de uma “abstração”. A matemática é culpada por simplesmente fornecer as operações elementares com as quais se define o IMC, o índice de massa corporal que, segundo eles, “formata” o conceito de obesidade (para calcular o IMC, divida o peso em quilos pelo quadrado da altura em metros).

Sendo formados os professores de matemática nesse ambiente, como de fato estão sendo, que ninguém espere melhora do desempenho matemático dos nossos jovens. Antes, prepare-se para o pior.

Jairo da Silva, mestre em matemática e doutor em filosofia, é professor titular aposentado do Departamento de Matemática da Unesp-Rio Claro e membro do CLE-Unicamp.

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