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Retrato de Juan Donoso Cortés.
Retrato de Juan Donoso Cortés.| Foto: Wikimedia Commons

Descrever o fenômeno do populismo é uma tarefa relativamente fácil. Trata-se, para usar o linguajar weberiano, de um tipo de dominação carismática, isto é, de uma forma de exercício da autoridade política na qual o governante é livremente obedecido pelo povo, que o reconhece como portador de uma capacidade única e de dons extraordinários. Neste modelo, o consentimento popular não se dá nem em virtude da tradição e do costume, nem por meio da religião e do sagrado, tampouco por algum motivo estritamente racional, como a defesa da legalidade, mas sim pelo carisma da figura pública, por sua personalidade singular.

Cria-se, assim, um vínculo direto líder-massa, que desvaloriza as mediações institucionais, como os partidos políticos, os programas bem delimitados e as negociações parlamentares: um elo direto e essencialmente afetivo, passional, emocional. O chefe não é apenas o chefe; ele é o caudilho, o coronel, o capitão, o pai dos pobres, o amigo do povo; sua palavra comove os corações. Lula e Bolsonaro, Vargas e Perón, Jango e Jânio, Brizola e Collor, Renan Calheiros e o velho Antônio Carlos Magalhães, Hugo Chávez e Rafael Ángel Calderón Guardia – cada um a seu modo, cada qual com suas especificidades bastante nítidas, e desconsiderando suas respectivas variações ideológicas – são exemplos deste mesmo tipo: o caudilhismo, o personalismo político.

Interpretar o fenômeno do populismo, por sua vez, para além de descrevê-lo, já é uma tarefa um tanto mais complicada. Segundo a narrativa liberal-republicana padrão, hegemônica nos grandes meios de comunicação, a política populista é uma chaga, uma vergonha histórica da América Latina, um sintoma de nossa modernização deficiente e uma consequência do nosso mal maior: o patrimonialismo, a incapacidade visceral de distinguir entre os domínios do público e do privado. Para esta perspectiva, o personalismo caudilhesco é “resposta fácil para problemas difíceis” e dele escoam, como de um rio, o autoritarismo e a corrupção.

Grandes autores, de diferentes maneiras, advogaram e advogam tal ponto de vista: Sérgio Buarque de Hollanda, Raymundo Faoro, Roberto DaMatta. É possível facilmente enxergá-lo, inclusive, na política cotidiana, quando um Ciro Gomes, por exemplo, ele próprio tantas vezes acusado de coronel, caudilho e populista, propõe “o fim da ilusão moralista católica” (ilusão moralista ibérica, ele queria dizer): “Não adianta alguém imaginar que um anjo vingador vai descer do céu, vai estalar o chicote e resolver o problema nacional brasileiro. Não vai”. O grande problema, naturalmente, é que esta visão hegemônica não é uma análise, mas um lamento. De fato, em que pesem todos os seus eventuais méritos e acertos, ela nada explica, só denuncia. Não vê virtude, só vício. É unilateral – algo que não convém ao cidadão genuinamente interessado no assunto, menos ainda ao filósofo e ao cientista. Afinal, como já dizia o célebre Spinoza, quem deseja verdadeiramente conhecer deve escrupulosamente buscar “não rir, não chorar, nem detestar as ações humanas, mas entendê-las”.

Pois bem: dito clara e sucintamente, o propósito essencial do presente artigo é oferecer uma compreensão nova do populismo, alternativa àquela hoje vigente e, portanto, uma nova compreensão também do próprio sentido da ação política no Brasil. Para tanto, seguiremos um caminho inusual. Nosso ponto de partida será a obra de Juan Donoso Cortés (1809-1853), filósofo tradicionalista espanhol que é objeto da minha pesquisa de mestrado. Ainda quando era um liberal doutrinário, afiliado à trupe de Guizot e Benjamin Constant, Donoso elaborou uma interessante teoria acerca da psicologia política hispânica. Ora, minha tese pessoal é de que tal teoria não apenas é verdadeira para a Espanha histórica, como também para o espírito público de todos os povos latino-americanos, colonizados que foram eles pelos reinos ibéricos.

Da obra donosiana extrairemos, por assim dizer, uma tipologia do populismo, apta tanto a explicar bem o seu funcionamento quanto a avaliar, sem unilateralismo, seus pontos altos e baixos. Fica, de todo modo, registrado o óbvio: ainda que busque haurir do Marquês de Valdegamas os princípios vivos que informam meu pensamento, é apenas em meu próprio nome que falo aqui – e se este escrito se chama “Em defesa do caudilhismo” não exatamente porque eu veja a política populista como algo angelical e perfeito, mas apenas porque não a enxergo como o demônio que muitos pintam por aí.

O texto no qual Juan Donoso Cortés apresenta, de modo mais nítido e sistemático, a sua tese acerca da psicologia política hispânica é um discurso parlamentar de 16 de novembro de 1844. As mesmas ideias-chave aparecem em outras obras, às vezes até com maior aprofundamento pontual – o Marquês de Valdegamas trabalhou a vida toda numa história geral da Espanha, que acabou nunca vindo à luz –, mas é nesta peça legislativa que a coisa fica mais clara. Foram, aliás, circunstâncias históricas bastante precisas que a geraram. Finda a primeira guerra civil carlista, que havia dilacerado a Espanha entre 1833 e 1840, finda também a breve conturbada regência do general Espartero, líder do Partido Progressista, de tendência liberal-radical, chegava, enfim, à liderança ao comando do Executivo nacional o Partido Moderado, uma agremiação de tendência liberal-conservadora à qual o próprio Donoso era filiado e que permaneceria no poder por dez anos dali em diante.

Bem, tão logo se alçaram à posição de comando do país, os moderados buscaram remodelar as instituições espanholas e reconstruir o arranjo institucional nacional: declararam maior a rainha infante Isabel II, apenas com 13 anos; promoveram o retorno à pátria da rainha-mãe Maria Cristina, então exilada em Paris; e elaboraram um novo projeto de Constituição, que tinha como objetivo repactuar as relações entre as diferentes forças políticas. Deste novo texto constitucional, que se tornaria a Carta Magna de 1845, foi justamente Juan Donoso Cortés o principal redator. E de tal modo estava ele envolvido com o projeto que, contra os seus instintos naturais – era grande orador, mas preferia trabalhar nos bastidores –, viu-se na incumbência de subir à tribuna, para defender a causa nas Cortes. Mais especificamente, para defender o seu texto original contra a emenda parlamentar que visava tornar o Senado uma assembleia aristocrática, com cargos hereditários.

Curiosamente, como encaminhou, porém, o descendente de Hernán Cortés o seu discurso de defesa parlamentar? Invocou filigranas jurídicas ou considerações casuísticas? Não. Ao contrário, e de modo bem mais abrangente, recorreu à história hispânica, buscando provar que institutos aristocráticos nada tinham que ver com a alma de seu país. A Espanha, ensinou Donoso, possui uma identidade própria, uma essência profunda, que se forjou ao longo das eras e cujo marco fundador se encontra no nascedouro mesmo do país: a Guerra de Reconquista. Duros, longos e sangrentos, com efeito, foram os embates, do século 8.º ao século 15, em que sucessivas gerações de cristãos, dispersos em uma variedade de reinos, enfrentaram os invasores muçulmanos, em defesa das terras que lhes pertenciam e da fé que visavam preservar.

Nesta guerra lancinante, desde o início, uma coalizão de forças se criou, uma pactuação, um acordo histórico entre três forças sociais: o rei, como liderança política e militar centralizada; a Igreja Católica, como instituição essencialmente religiosa, mas também educativa e cultural; e as classes populares, dos soldados de baixa patente, dos camponeses e dos artesãos, responsáveis pela sustentação material do país. Tais forças, aponta o Marquês de Valdegamas, construíram entre si uma aliança inquebrantável, de tal modo que a identidade política hispânica pode ser definida como uma monarquia católico-democrática: “Espanha, senhores, foi sempre uma monarquia; esta monarquia, em todo o prolongamento dos tempos, foi sempre uma monarquia religiosa; esta monarquia, em todo o prolongamento dos séculos, foi sempre uma monarquia democrática. A monarquia! Vede aí, para nós, a verdade política. O catolicismo! Vede aí, para nós, para todos, mas para nós especialmente, a verdade religiosa. A democracia! Vede aí, para nós, a verdade social. O catolicismo, a monarquia, a democracia: vede aí por completo a verdade espanhola”.

Por motivos óbvios, uma pactuação tão visceral não se faz sem divisão do butim, quer dizer, sem repartição de ganhos; tampouco se faz sem inimigos permanentes, que a motivem no início e mantenham vivas depois. Tudo isto, a propósito, é bastante palpável no caso da dita monarquia católico-democrática. Consubstanciada na Reconquista, seus inimigos, comecemos por eles, eram basicamente dois: no âmbito externo, é claro, os invasores árabes e mouros, de fé islâmica, que se buscava expulsar da península; e no âmbito interno, não menos importante, a aristocracia. De fato, num cenário de terra arrasada e enfrentamento constante, quem mais se beneficiava no curto prazo eram os nobres, senhores locais onipotentes em seus respectivos domínios e que podiam passar confortavelmente de um lado para outro da guerra a todo momento, conforme as circunstâncias. Seus interesses pessoais, necessariamente regionais e divisionistas, não tinham nada a ganhar com uma resolução definitiva daquele conflito militar, resolução que necessariamente os subordinaria a uma autoridade central mais poderosa. “A monarquia espanhola nasceu nas Astúrias. Eu não vejo ali, senhores, nem um rastro de aristocracia. Eu vejo ali um rei que representa a monarquia, vejo sacerdotes que representam a Igreja, vejo soldados que representam o povo”, discursou o marquês. “Assim, senhores, houve duas guerras ao mesmo tempo em Espanha, uma guerra estrangeira e uma guerra civil. A guerra estrangeira era entre espanhóis e árabes, entre o catolicismo e o maometismo; a guerra civil era entre a aristocracia, por um lado, e a democracia, a monarquia e a Igreja, por outro”.

Mas é na divisão do butim, confessemos, que a coisa fica mais interessante. Com efeito, conforme a Cruzada ibérica avança, a progressiva repartição dos ganhos é patente. Os reis, em primeiro lugar, cada vez mais fortalecidos, não só aumentam exponencialmente o seu poder como também realizam, geração após geração, um bem-sucedido processo de unificação nacional. Morrem, pouco a pouco, os pequenos reinos de Castela, Leão, Aragão, Navarra e quejandos, restando não mais que uma só monarquia espanhola, grande e sólida. A Igreja, ao mesmo tempo, também se beneficia em muito. Não só vê nascer um poderoso Estado-nação confessional, que se submete à sua ortodoxia, protege sua autoridade, financia seu trabalho missionário e sustenta seus sacerdotes, como também adquire a hegemonia de todo o processo educacional, de toda a formação moral das consciências e de toda a produção cultural do país. De suas fileiras brotam os livros, as obras de arte, as pesquisas, os pensadores.

Por fim, ao povo simples, aos trabalhadores e necessitados, cabem não poucas recompensas nesta aliança. Podemos notá-las, antes de tudo, no municipalismo, regime tão tipicamente ibérico, que conferia a cada cidade um altíssimo grau de autonomia política, tanto em relação aos senhores feudais do entorno quanto em relação ao próprio rei. Na mesma linha, o reconhecimento dos fueros, códigos legais específicos de cada região do país, historicamente consagrados, fundados nos usos e costumes de cada comunidade local, que os monarcas medievais sempre respeitaram e promoveram. Há, ainda, os pactos econômicos, como a promoção das corporações de ofícios, organizações coletivas dos artesãos citadinos, que lhes davam maior poder de barganha e lhes garantiam assistência mútua; além das leis contra os abusos senhoriais, outra marca hispânica, regras trabalhistas avalizadas pelos próprios reis e pelas quais estes se comprometiam pessoalmente a, se preciso fosse, confrontar a aristocracia nobre em defesa dos direitos dos camponeses. Por fim, cabe não esquecer toda a larga rede de assistência social da Igreja (hospitais, casas de misericórdia etc.), tantas vezes financiada com a verba real.

“E assim é, senhores, que eu creio, que aceitando o princípio hereditário, que dizer, o princípio aristocrático, edificamos sobre a areia” – concluiu Donoso Cortés, vendo na emenda proposta ao seu texto constitucional um princípio antiespanhol. “Senhores, eu creio que não há mais do que um meio de governo para as nações; e esse meio é reunir em um único ponto todos os elementos constitutivos da nação que se trata de governar. Na Espanha, para governar, se necessita reunir em um único centro todos os elementos constitutivos da nação espanhola. E quais são estes elementos? A religião, a monarquia e a democracia. Um partido que não seja ao mesmo tempo monárquico, religioso e democrático não pode governar bem. Um partido que não reconhecesse nenhum destes princípios não poderia existir sequer; e os partidos que reúnam algum ou alguns destes princípios, mas não todos, serão algumas vezes governados, e outras governantes, umas vencidos, e outras vencedores”.

Monarquia como forma de governo, catolicismo como cosmovisão e substrato moral, democracia como finalidade social, isto é, como meta e missão da autoridade pública: “A monarquia democrática é aquela em que prevalecem os interesses comuns sobre os interesses privilegiados, os interesses gerais sobre os interesses aristocráticos”. Tal pacto fundacional, conforme pensava o descendente de Hernán Cortés, não era mera origem remota, mas também e sobretudo destino, vocação histórica profunda e permanente, a ser perpetuamente encarnada e reencarnada, em cada tempo, de acordo com as exigências de cada época. Na monarquia católico-democrática estaria o fundo mais fundo da alma hispânica. E portador desta convicção, de um modo cada vez mais radical, foi o Marquês de Valdegamas até o fim de seus dias.

“Como seremos democráticos, no bom sentido da palavra?” – questiona Donoso em um discurso parlamentar posterior, de 15 de janeiro de 1845, em que trata do sustento do clero e das exigências atuais da identidade política da Espanha. “Seremos democráticos, dando ao povo aquela educação religiosa a que têm direito todos os seres morais, aquela educação, aquela instrução a que têm direito todos os seres inteligentes, dando-lhes o pão a que têm direito os seres que vivem e trabalham; o seremos, enfim, senhores, dando-lhes uma participação completa, não escassa, em tudo o que tenha relação com os interesses materiais e locais. Não daremos mais ao povo porque isto seria abrir-lhe as portas da política e abrir as portas das revoluções; mas não lhe daremos menos, porque seria faltar com aquela suprema equidade que deve presidir à repartição de todos os benefícios sociais.”

Mais: em seu último escrito relevante, uma carta privada à rainha-mãe Maria Cristina de Bourbon, asseverou o filósofo tradicionalista que “As monarquias cristãs não alcançaram a prodigiosa duração de 14 séculos senão porque Deus colocou nelas uma secreta e misteriosa virtude, em função da qual se foram adaptando, por meio de lentas e sucessivas transformações, ao curso variado dos tempos”. Assim, dizia ele, foram os reis fortes quando os países nasciam e era necessário dar-lhes coesão e força. Foram, igualmente, os reis justos quando era preciso confrontar as nobrezas regionais e garantir tribunais nacionais de justiça. Ora, conclui Cortés, o drama central do mundo moderno é a questão social, da distribuição de riqueza, do abismo entre ricos e pobres. Cabe, pois, à monarquia capitanear sua solução, por meio da esmola em larga escala – esmola pública – e através da restauração de uma legislação econômica adequada, imbuída de espírito católico, que imponha limites à avalanche liberal-capitalista. Chefia monárquica, valores cristãos e camadas populares, todos unidos, ontem, como hoje, sinteticamente: “Os pobres são amigos de Deus; e Deus não permitirá que caia um Trono onde se assenta uma Rainha mãe e amiga dos pobres”.

A quem tenha olhos de ver, é bastante claro e fácil notar que a teoria donosiana acerca da psicologia política espanhola transcende em muito as especificidades da sua pátria. Primeiro, porque Portugal, o país vizinho, jamais se unificou com os demais reinos ibéricos, salvo por um breve período – e, no entanto, teve um processo histórico formativo substancialmente idêntico, também forjado na Guerra de Reconquista; também monárquico, também católico, também democrático. Além do mais, conforme já adiantei desde os primeiros parágrafos, o que Donoso constituiu, abstraindo-se os elementos mais imediatos, concretos e indo até os princípios mais gerais, foi uma tipologia perfeita do populismo caudilhesco, este espectro que perpassa o espírito público de todos os povos latinoamericanos. De fato, a tipologia é tão adequada para nós que se mostraria proveitosa até mesmo se, hipoteticamente, alguém demonstrasse que a tese de Donoso Cortés falseia a história hispânica. Todos os elementos-chave estão lá: a pactuação política entre diferentes forças e agentes sociais em nome de um projeto nacional; a coalizão que se faz no contexto de uma luta pela emancipação da pátria; a oposição às oligarquias e aristocracias internas, de teor divisionista, potencialmente aliadas do agressor externo; a concentração política da coalizão e pactuação na figura singular de um líder, um caudilho, que governa à maneira monárquica, desprezando os poderes locais estabelecidos e se vinculando diretamente com a massa; a obrigação, enfim, de fidelidade do caudilho ao povo, expressa de dupla maneira: de um lado, pela proteção e promoção dos valores morais e religiosos populares, de outro, pela defesa dos interesses econômicos e necessidades materiais dos mais simples.

Neste corte, uma objeção pouco imaginativa argumentará, talvez, que tudo isso não passa de coincidência e forçação de barra. O que, naturalmente, poderia ser verdadeiro, não fosse o fato modesto de que Portugal e Espanha colonizaram toda a América Latina por mais de 300 anos, dando forma às suas instituições, estabelecendo seus costumes, constituindo o seu território tal como ele é hoje e, sobretudo, construindo seu imaginário social. Não à toa, tão logo proclamada a República, o Brasil nos gerou Canudos: este sonho sebastiano de uma monarquia católica e socialista, de um Conselheiro que era profeta de Deus, condenando a queda de dom Pedro II como sinal de apostasia, mas que criou uma comunidade de absoluta partilha, sem propriedade privada, do pobre e para os pobres.

Não à toa, também, Getúlio Vargas, mesmo sendo ele próprio pessoalmente anticlerical, uma vez vitoriosa a Revolução de 1930, não pestanejou em pactuar com a Igreja. De fato, era desejo profundo do presidente construir no Brasil um Estado social, com potente legislação trabalhista e amplos mecanismos de inclusão econômica, e ele sabia, conforme lhe falou diretamente o cardeal Leme na inauguração do Cristo Redentor, que o povo não reconheceria o Estado se o Estado não reconhecesse o Deus do povo. Daí a Constituição de 1934, que foi proclamada em nome de Deus, que consagrou o ensino religioso facultativo nas escolas públicas, a assistência religiosa facultativa nos órgãos públicos, e que proibiu o divórcio. Não à toa, enfim, Juan Domingo Perón, o grande líder do justicialismo argentino, em tantos aspectos semelhante ao nosso varguismo, viu-se pressionado a partir de 1954, quando entrou em rota de colisão com a Igreja, excluindo-a da educação pública, legalizando os prostíbulos e as segundas núpcias, e até mesmo proibindo que comerciantes expusessem presépios em seus estabelecimentos à época do Natal. O conflito com a fé católica enraizada no povo precipitou que aquele homem, que tanto fizera pelos trabalhadores e pelos pobres, tivesse de renunciar em 1955.

Inúmeros outros exemplos poderiam confirmar ser a monarquia católico-democrática o arquétipo, consciente ou não, de nosso populismo. Basta ler, por exemplo, o célebre discurso de João Goulart no Comício da Central do Brasil, seu último ato significativo de governo antes do golpe de 1964. Com efeito, em defesa de suas Reformas de Base, em especial da reforma agrária, o que Jango invocou naquele discurso? Teóricos ou chavões típicos da esquerda? Não. Mas a palavra do papa João XXIII, vocalizada em suas encíclicas sociais: “É dentro desta autêntica doutrina cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política social, particularmente a que diz respeito à nossa realidade agrária. O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados”. Contra a elite econômica que o acusava de arroubos autoritários, mas na qual ele via interesses divisionistas e apátridas, bradou enfaticamente Goulart no mesmo dia: “Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos papas, que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro”.

E, se vamos para o lado oposto do espectro ideológico, mas permanecemos atentos ao mesmo tipo de psicologia política, não podemos deixar de comentar Francisco Franco, o dito Generalíssimo. Caudilho que governou a Espanha por 40 anos, com mãos de ferro, perseguindo adversários políticos, Franco chegou ao poder máximo do país por meio de uma guerra civil encarada pela população como Santa Cruzada e fez do chamado nacional-catolicismo a ideologia oficial do regime, inclusive restabelecendo a confessionalidade católica do Estado – mas seu primeiro ato relevante de governo foi justamente a promulgação do Fuero del Trabajo, uma legislação social e trabalhista bastante abrangente, cujo decreto iniciava-se com as seguintes palavras: “Renovando a tradição católica de justiça social e alto sentido humano que informou a legislação de nosso glorioso passado, o Estado assume a tarefa de garantir aos espanhóis a Pátria, o Pão e a Justiça”.

Na proximidade esforçada de Antônio Carlos Magalhães com Santa Dulce dos Pobres; nas origens históricas do PT de Lula, tão dependentes das Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação; no manifesto de Brizola, candidato ao governo do Rio Grande do Sul em 1958, dizendo que, enquanto o comunismo é materialista, o trabalhismo se inspira na doutrina social cristã: em tudo isso e em cada uma dessas coisas, há bem mais do que se imagina. O populismo não é uma casualidade. Ele não existe por um acaso nem por nossas supostas deficiências civilizatórias. Antes, fruto maduro de nossa colonização ibérica. O personalismo político é, em primeiro lugar, uma resposta – boa ou ruim, que seja – a um autêntico drama real: o povo, as classes populares sentem-se apeadas do poder. Elas não se identificam com as instituições, não se enxergam na ordem pública vigente.

E não se identificam e não se enxergam por um duplo aspecto: tanto porque os seus interesses sociais e econômicos não são contemplados, padecendo os pobres de fome, de desemprego, de exploração e de falta de oportunidades; quanto porque os seus valores morais e religiosos não são levados a sério, desprezados todos pela elite, que vê nos costumes da multidão sempre o atraso, o conservadorismo caipira, a tolice, o preconceito. Não se trata, pois, de gostar ou desgostar do populismo. Não se trata de vê-lo como bom ou mau. A questão é mais básica: enquanto houver, no fundo da consciência popular latino-americana, a crença enraizada de que nossas pátrias não são plenamente livres e de que nossa emancipação não foi consumada; enquanto houver, no fundo desta mesma consciência, a convicção de que a autêntica independência nacional não chega porque é sabotada por inimigos externos (seja o imperialismo americano ou o globalismo); enquanto houver também a crença firme de que os inimigos externos contam com valiosos auxiliares internos (a elite apátrida que renega a sua própria multidão e a sua própria identidade); enquanto, enfim, houver tais condições objetivas, então haverá sempre espaço para a ascensão de um caudilho carismático, que se diga compromissado com os valores do povo e com as necessidades prementes do povo.

Pode o caudilhismo degenerar em governo autoritário? Evidente, e a história está farta de exemplos. Pode ele vir a promover a corrupção? Sem dúvida alguma. Tudo que é construído pelas mãos dos homens, por definição, é falível. Contudo, não faz qualquer sentido ser contra o populismo em abstrato. Primeiro, porque assim como há caudilhos autoritários e corruptos, que desprezam a legalidade, há os que não são. Não se trata de um vínculo necessário. Segundo, porque o modelo tem também suas vantagens e méritos evidentes: gera mobilização popular e senso de identidade política; contraria interesses oligárquicos que têm de ser contrariados; promove, pela noção de projeto nacional, transformações relevantes. Por fim, o mais importante e essencial: o personalismo, incrustado que está em nossa formação ibérica, responde a dilemas reais. Bem ou mal, ele lida com os dramas de povos desesperançados, abandonados pelas instituições, vilipendiados em suas necessidades vitais e em seus costumes históricos. Quem não compreender isso não compreenderá jamais o fenômeno do caudilho – e, não o compreendendo, não fará mais do que aumentar ainda mais o fosso já existente entre a política e a elite social, de um lado, e a multidão, de outro.

Ora, não se pode arrogar o direito de defenestrar a liderança direta, afetiva e carismática quem não tenha alternativa melhor, mais factível em mente. E não será jamais melhor nem mais factível uma alternativa estrangeirada, que não se conecte com nossa história e nossa alma profunda. Que se dê melhor arranjo institucional ao nosso ethos! Desfazer dele, porém, ou ignorá-lo jamais. Eis aí uma lição nunca suficientemente aprendida por nossas classes letradas e sua sociologia de conveniência.

Quando, nos anos 40, a nobre nação da Costa Rica, a exemplo do que faziam Brasil e Argentina, ensaiou um projeto de emancipação econômica e soberania social, muitas mudanças comoventes se produziram: criação da Universidade Nacional da Costa Rica, estabelecimento de um sistema de previdência, assistência e saúde públicas, inclusão de um capítulo de garantias sociais na Constituição, promulgação de um pujante código trabalhista, que regulava “os direitos e obrigações de patrões e trabalhadores em ocasião de trabalho, de acordo com os princípios cristãos de Justiça Social”. Pois bem: três, caro leitor, três foram os indivíduos que se uniram e pactuaram todas essas reformas, inclusive desfilando juntos, nas ruas de San José, para comemorá-las em público: Rafael Ángel Calderón Guardia, caudilho carismático e presidente eleito; Dom Victor Manuel Sanabria Martínez, arcebispo da capital, figura principal da Igreja Católica no país; e Manuel Mora Valverde, líder querido e chefe maior do Partido Comunista Costarriquenho, renomeado então Vanguarda Popular, para permitir o sucesso da coalizão e não escandalizar os ouvidos pios. Muitos, por certo, haverão de considerar algo obsceno o chamado caldero-comunismo, contra o qual se levantaram em armas, anos depois, em aliança, social-democratas, oligarcas e liberais. Há, sem dúvida, muito de contraditório na síntese em questão. Mas que há aí, no fim das contas, senão a beleza singular de nossa América Católica? Beleza em que, tragicamente, Caetano Veloso viu tão somente podres poderes, e a incompetência a sempre precisar de ridículos tiranos. Mas em que nós, talvez, seguindo as pegadas do Marquês de Valdegamas, possamos enxergar um tanto mais.

Pedro Ribeiro é graduado em Filosofia, mestrando em Filosofia Política, professor no ensino médio e um dos coautores de “Distributismo: economia para além do capitalismo e do socialismo”. 

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