“Justamente por conhecer bem – e por dentro – o magistério, a formação de professores e a gestão escolar, sinto-me não somente apto, mas também eticamente impelido, a denunciar a nossa escola”.| Foto: Unsplash
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Sou professor doutor em Filosofia. Trabalhei no ensino básico e superior, tanto na rede pública quanto na particular. Formei professores na Faculdade de Educação e em licenciaturas. Fui proprietário e diretor de uma escola que atuava no ensino fundamental. Sou pai de crianças. É este o meu lugar de fala: ocupo o lugar da convergência de muitos espaços pedagógicos.

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Justamente por conhecer bem – e por dentro – o magistério, a formação de professores e a gestão escolar, sinto-me não somente apto, mas também eticamente impelido, a denunciar a nossa escola.

Por muitos anos senti que havia algo estranho no nosso modelo pedagógico. A atitude dos professores, o conteúdo alienante, o sofrimento infanto-juvenil – tudo isso me parecia ruim, mas inevitável. Em certo momento, todavia, comecei a estudar a crítica da educação – de Célestin Freinet e de Ivan Illich, de Alexander S. Neill e de Pierre Bourdieu, de Mortimer Adler e de John Taylor Gato, a crítica tanto de radicais quanto de conservadores. Foi então que pude formular com precisão o que já intuía: que a opressão e a alienação no mundo escolar não eram caracteres necessários no processo pedagógico – pelo contrário, eram caracteres contingentes e perfeitamente dispensáveis.

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Como formador de professores e, em especial, como diretor escolar, compreendi que o problema da escola é imenso e de dificílima solução: tudo ali está ordenado para que o ciclo de enlouquecimento da sociedade se perpetue. Do currículo insano ao espaço escolar, da formação cultural dos mestres ao seu salário, parece que a escola brasileira foi criada com o propósito de impedir que a educação aconteça.

O currículo é impossivelmente extenso; a partir do segundo segmento do ensino fundamental, e ainda mais no ensino médio, nenhum professor domina todas as áreas que os alunos precisam, por sua vez, dominar. Loucamente, exige-se das crianças que conheçam mais que os adultos que as ensinam. Além disso, no ensino médio brasileiro, boa parte do conhecimento apresentado nas aulas é completamente inútil para a vida da maioria dos estudantes. Consequentemente, o currículo escolar deixa de ser relevante: o seu conteúdo deve ser aprendido para a realização de provas – e imediatamente esquecido.

Por isso, o currículo de fato da nossa escola é precisamente o seu currículo oculto: o aprendizado de como fingir ter um conhecimento que não se tem, de como se submeter ao capricho da autoridade sem reclamar, de como alienar-se de si, naturalizando no espírito uma situação completamente artificial.

O espaço escolar, com seus horários definidos, com seus uniformes para alunos, professores e pessoal de apoio, com suas turmas separadas por idade e ordenadas em função do sucesso acadêmico, com a arbitrariedade dos professores e da direção, é completamente diferente do espaço de uma sociedade saudável – e curiosamente parecido com o de fábricas e quartéis.

Única coisa que salva a nossa escola é justamente aquilo que vai contra a disciplina escolar: é o conjunto pequeno, mas indispensável, de professores que não se submetem às regras.

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A imensa maioria dos nossos professores não sonhava com o magistério: a carreira pedagógica é quase sempre escolhida porque é a mais fácil no momento do vestibular. É fácil porque não é atrativa salarialmente; o professor brasileiro está entre os mais mal-remunerados de todo o mundo. Isso significa que muitos dos profissionais da nossa escola têm pouca leitura e pouca cultura; com os salários miseráveis que recebem, não têm nenhuma condição de mudar a sua situação. Não podem comprar livros, fazer cursos, viajar para outros países. Professores incultos tendem a permanecer incultos – e a formar alunos ainda mais incultos, num círculo vicioso difícil de romper.

É triste a conclusão de que quase tudo na nossa escola é ruim, é inaceitavelmente ruim. Se a escola não é completamente tenebrosa, agradeçamos aos professores que, excepcionalmente, se constituem também como educadores: aos professores que descobriram que mais importante do que as notas é o olhar atento e carinhoso do mestre; que mais útil do que passar a matéria é oferecer a escuta; que para além do teatro do absurdo da sala de aula há crianças (sim, porque crianças e adolescentes são crianças) que precisam enfrentar crises domésticas, emoções descontroladas, cobranças desmedidas, luto, insegurança, incompreensão – e precisam enfrentar tudo isso em silêncio.

Infelizmente, a única coisa que salva a nossa escola é justamente aquilo que vai contra a disciplina escolar: é o conjunto pequeno, mas indispensável, de professores que não se submetem às regras – professores que compreendem que mais importante que instruir é cuidar das crianças para que elas frutifiquem. A partir do meu lugar de fala, posso dizer com alguma propriedade que não precisamos de uma escola instrutora, mas de uma escola educadora, e sobretudo de uma escola atenta, cuidadora e libertadora.

Gustavo Bertoche é doutor em Filosofia.