Todas as manchetes das revistas que trataram das vítimas de Santa Maria se referem a uma tragédia humana de proporções avassaladoras. Na Veja: "Nunca mais", "Essa dor não passa", "Quando o Brasil vai aprender?", "A asfixia não acabou". Na Época: "Tão jovens, tão rápido e tão absurdo", "A tragédia e seus sócios", "Futuro roubado", "Uma tragédia estúpida". Na IstoÉ: "Nossos jovens nas arapucas da morte", "Basta", "Santa Maria, rogai por eles". Na Carta Capital: "É pedir muito que o Brasil aprenda com a tragédia?", "235 razões para agir".

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Todas essas manchetes se referem à devastadora tragédia da boate Kiss, em que centenas de jovens perderam a vida, familiares perderam os filhos e o Brasil perdeu um pedaço de seu futuro. Uma tragédia brutal não apenas por seu tamanho, mas também porque ela era perfeitamente evitável.

Mas ela se aplica também a uma outra tragédia, menos visível e estridente, que também toca brutalmente cerca de 50 milhões de crianças e jovens no dia a dia de suas vidas. Depois de aplicar as manchetes a essa outra tragédia, fica claro como o nome da boate de Santa Maria é uma metáfora da escola brasileira, das nossas escolas Kiss.

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Na primeira delas, os jovens perderam a vida por inalar um gás venenoso; na outra, as crianças perdem o futuro por não inalar o oxigênio que está no conhecimento. A imprevidência de proprietários, músicos e fiscais levou à morte por falta de ar; a imprevidência histórica de políticos, pais e eleitores leva a uma vida incompleta por falta de conhecimento.

A tragédia mostrou os riscos que correm nossos jovens em seus fins de semana em boates. Mas ainda não despertou para o que perdem nossas crianças e jovens no dia a dia de suas escolas. Porque é uma tragédia cujo costume nos embrutece, ou porque são crianças invisíveis pela pobreza, ou ainda porque somos um povo sem gosto pela antecipação.

O abandono de nossas escolas não mata diretamente, mas dificulta o futuro de cada criança que não estuda. No mundo atual, a vida fica incompleta sem estudos. O país perde o futuro potencial de cada uma dessas crianças. A boate bem cuidada pode ser o local de alegria de que os jovens precisam no presente. A escola de qualidade é o depósito, onde está guardado o futuro de cada criança brasileira.

A tragédia de Santa Maria provoca uma percepção imediata pela dimensão de seus estragos nas vidas de vítimas, mas a tragédia de nossa educação não é percebida, não mostra seus estragos imediatos. Por isso, certamente, fechamos os olhos à tragédia que devassa o Brasil.

Se as escolas fossem de qualidade para todos, teríamos menos violência urbana, maior produtividade. Estaríamos avançados no mundo das invenções de novas tecnologias. Seríamos um país melhor. Uma boate insegura devasta a vida de pais; uma escola sem qualidade devasta a vida do país.

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Por isso, ao mesmo tempo em que choramos as mortes dos jovens de Santa Maria, choremos pelo futuro das crianças que hoje frequentam escolas Kiss, sem receber a educação necessária para enfrentar o mundo. Choremos pelos que perderam a vida na boate e pelos que não vão receber nas escolas as condições necessárias para uma vida plena. Choremos o dano causado por um gás venenoso provocado na boate, e a falta de oxigênio cultural que asfixia também nossas crianças.

Não vamos recuperar as vidas eliminadas na boate Kiss, mas podemos evitar o desperdício das vidas das que estão hoje nas escolas Kiss, e daquelas que ainda virão no futuro.

Cristovam Buarque, professor da UnB, é senador pelo PDT-DF.