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Considerar todos os indivíduos como iguais em direitos e deveres é uma novidade de duzentos anos que não alcançou completamente as mentes e corações ao redor do mundo. Muitas e muitas sociedades ainda são segmentadas e às pessoas que as compõem são deferidos privilégios ou dificuldades de acordo com a classificação social e não conforme as virtudes ou vícios individuais.

No Livro V das Ordenações Filipinas encontram-se pérolas do tratamento diferenciado pela classe das pessoas: "... em aquele caso em que outra pessoa de mais baixa condição deveria ser presa em ferros, o Fidalgo, ou Cavalheiro, seja preso no castelo da cidade ou em outra casa honesta". O Código de Processo Criminal do Império manteve a estrutura estamental da sociedade e a nobreza brasileira teve assegurado um tratamento jurídico privilegiado em relação aos plebeus.

A República foi constituída para, dentre outras tarefas, afirmar a existência de uma sociedade isonômica, sem nobres, plebeus e escravos, sem privilégios decorrentes do nascimento numa ou noutra classe. As idéias que fomentaram o fim da estrutura estamental do período monárquico foram calcadas na intenção generosa de que todos os brasileiros tivessem igual valor político e jurídico. Nessa medida, a República foi um avanço em relação ao Império, no qual a desigualdade entre as pessoas conforme a sua classe social era entendida como resultado de tradição milenar.

Há fatos que resistem às idéias e pessoas eleitas pelo povo, meros procuradores da população, se comportam como donos do poder e dos bens públicos. Ao longo dos 118 anos de República formou-se no Brasil um feudalismo pós-moderno, com condados, ducados, principados, governados como patrimônio de família. Essa persistência do atraso, da prática anti-republicana, se manifesta no foro privilegiado para julgamento dos políticos em matéria criminal.

Na verdade, ao tempo em que o Ministério Público e a Magistratura eram extensões dos políticos de plantão, as acusações e julgamentos infundados vicejavam como inço e o privilégio de foro (ser julgado por juiz ou tribunal diferente daquele competente para o cidadão comum) funcionou como remédio amargo para uma conjuntura política doentia. O foro privilegiado era um mal menor. Ocorre, faz décadas, que o Ministério Público e a Magistratura ganharam independência em relação aos políticos e a Constituição de 1988 consolidou essa autonomia. Não há mais nenhuma razão para a manutenção de um método de julgamento que lembra o Brasil colonial.

Vive-se a sensação de que o exercício dos cargos públicos é pautado por regras feudo-mafiosas, mas também tem-se a sensação de que os mecanismos de combate jurídico demonstram alguma capacidade de funcionamento, tanto pela melhora da técnica investigativa da polícia quanto pela ação por improbidade administrativa posta à disposição do Ministério Público e pela negação de foro privilegiado a ex-autoridades decidida pelo Supremo Tribunal Federal. Porém há uma reação a esse esforço de tornar republicano o exercício do poder: os reacionários pós-modernos estão em todos os partidos e já aprovaram no Senado a ampliação do privilégio de foro às ex-autoridades e também para a matéria de improbidade administrativa. A proposta de emenda constitucional está às portas do plenário da Câmara dos Deputados, visando a acrescer o art. 97 A à Constituição Federal.

Se houver aprovação dessa emenda à Constituição, cerca de 10 mil processos serão subtraídos da apreciação de 5 mil juízes de primeira instância e remetidos para os Tribunais, onde a proporção será de 20 processos para cada julgador. A intenção subliminar nessa emenda constitucional é afogar os Tribunais com um volume imenso de processos muito difíceis e inviabilizá-los operacionalmente para, ao fim, manter a impunidade dos barões e príncipes que se apossam das coisas públicas. Impunitas peccandi illecebra – a impunidade estimula o pecado – já dizia a sabedoria antiga.

Contra essa perspectiva de alastramento da impunidade, a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) promove hoje uma mobilização contra o ampliação do privilégio de foro para chamar a atenção dos brasileiros diante da escolha entre o caminho da igualdade de valor e tratamento de todas as pessoas e o caminho da desigualdade, da desvalorização das pessoas que não ocupam cargos políticos, da impunidade daqueles que agem como se fossem donos dos bens que são da coletividade.

Friedmann Wendpap é presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais.

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