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Culpa de Fernão de Magalhães, que colocou todos no mesmo mar, ou culpa dos construtores dos canais de Suez e Panamá, que redesenharam o mapa-múndi. A verdade é que hoje nenhuma nação é uma ilha. Estamos no mesmo continente, vizinhos, condôminos involuntários de uma propriedade sem proprietários, gerida por síndicos cada vez mais questionados.

A interdependência entre as nações é um dado concreto, irreversível, isso evidenciou-se mais uma vez na entrevista concedida pelo presidente Lula ao jornalista Clovis Rossi da Folha de S. Paulo: deveria circunscrever-se à política externa, mas na versão publicada pelo jornal na sexta-feira, 70% do espaço é dedicado ao fim da concessão à RCTV venezuelana que o delírio de Hugo Chávez e o impensado apoio do PT converteram em polêmica nacional.

"O fato dele [Chávez] não renovar a concessão é tão democrático quanto dar [a concessão]. Não sei porque a diferença entre dois atos democráticos. A diferença com o Brasil é que conseguimos colocar na Constituição que isso passa pelo Congresso. Não é uma decisão unilateral do presidente. Lá é. Faz parte da democracia deles."

Com rara felicidade, o presidente Lula colocou o dedo na questão central: "a democracia deles". A pequena diferença tem enorme importância. A democracia defendida pelo chavismo não é a nossa, é chaveco, mera formalidade que contraria o princípio pétreo do equilíbrio entre os poderes.

Não cabe ao chefe do Executivo determinar quem merece ou deixa de merecer a concessão de um serviço público, essa decisão deve ser obrigatoriamente referendada pelo Legislativo que representa a sociedade. Ela sabe o que lhe convém e quando contrariada de forma tão arrogante vai para as ruas como está acontecendo em Caracas.

No Brasil – teoricamente pelo menos – estamos mais perto dos princípios basilares da democracia. Na entrevista de 80 minutos, o presidente Lula preferiu não alongar-se sobre a diferença entre o conceito brasileiro e venezuelano de democracia representativa, mas justamente esta diferença foi a causa do inusitado acesso de fúria do senador José Sarney (um dos principais aliados do presidente Lula) que acionou o protesto dos seus pares e tanto irritou Hugo Chávez.

Não temos o direito de interferir nas relações entre o governo e mídia na Venezuela. Mas temos a obrigação de opinar sobre a questão, da mesma forma com que condenamos a invasão do Iraque ou o suicídio ambiental proposto por George W. Bush. São decisões domésticas, intestinas, que afetam o destino do mundo.

O apoio do PT a Hugo Chávez, manifestado na segunda-feira, não pode ser ignorado nem minimizado. Trata-se do partido do presidente, o partido que mais influi na sua política externa, o partido que dá sustentação a algumas das propostas mais alucinadas sobre o financiamento de uma "imprensa independente" e também o partido que nas eleições passadas tentou avacalhar a imprensa com o Dossiê Vedoin e, em seguida, estimulou o linchamento daqueles que o denunciaram.

Diante da repercussão da sua entrevista à Folha de S. Paulo, o presidente Lula procurou explicar-se ao longo desta sexta-feira: "Eu não apoiei o Chávez nem no 1.º dia, nem ontem, nem hoje. A única coisa que defendo é que aquilo é um problema da Venezuela."

O presidente Lula está certo, é um problema da Venezuela. Mas esqueceu que em novembro passado, já reeleito, foi ao território venezuelano prestar solidariedade a Hugo Chávez justamente na questão da mídia. Naquele momento dava uma contribuição decisiva para a chavização da nossa pauta política. Cabe a ele, apenas a ele, desligar este desastrado circuito.

O Brasil, pelo seu tamanho, riqueza e importância política, tem condições para exigir sua participação em todos os grupos internacionais, do G-5 ao G-20. Mas para afirmar sua soberania e demarcar-se dos EUA não pode resignar-se à condição de acólito de um caudilho que depois de conspurcar o socialismo, liquida a democracia e compromete o futuro da América Latina.

Alberto Dines é jornalista.

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