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Os mais jovens talvez tenham dificuldade em conceber um tempo em que as pessoas não opinavam sobre tudo o que lhes viesse à cabeça. Até mesmo os sábios, pasme-se, falavam apenas do que sabiam. A minha geração, hoje com pouco mais de quarenta anos, foi uma das primeiras em Portugal a se beneficiar da transformação social que permitiu que fôssemos adolescentes para sempre. Nós, ao contrário dos nossos pais e avôs, podíamos falar sobre qualquer coisa e achávamos que os outros tinham a obrigação de nos ouvir. Chamávamos a isto de “liberdade”. Ao mesmo tempo, não queríamos saber como eram as coisas, como era a vida das pessoas comuns, quais os possíveis e os impossíveis que fazem parte da estrutura do universo. Todo o elemento de realidade era visto como um empecilho para a nossa “liberdade”. Podíamos dizer que o nosso lema era o famoso “É proibido proibir”, embora se nos perguntassem se tinha sido Confúcio ou a Madonna a dizer tal coisa, iríamos replicar que a metafísica não é o nosso forte.

Nós criamos a ilusão de que tudo é possível

Depois, surgiu uma geração ainda mais privilegiada, que já não tinha de chegar à adolescência mas podia permanecer no estado infantil por tempo indeterminado. Estes “girinos” não queriam apenas a “liberdade”, queriam mudar o mundo. A minha geração não percebeu até hoje que serviu apenas de navio quebra-gelo para esta nova linhagem, pois a única função de tal embarcação é abrir caminho para outros passarem. Nós criamos a ilusão de que tudo é possível, por isso, os nossos filhos espirituais, que não conseguem comprar um par de calças sem ajuda da mãe, acham que o mundo podia muito bem ser gerido a partir dos seus caprichos.

Mas uma nova geração ainda mais sublime já está se afirmando. Estas novas pessoas, que por vezes têm uma idade bastante respeitável, estão menos preocupadas em mudar o mundo do que em se definir a si mesmas. Não aceitam que a sociedade, a biologia ou o bom senso digam o que elas são. Qualquer marmanjo barbudo e com mais de cem quilos pode decidir ser uma garotinha de seis anos, um animal doméstico ou até mesmo uma jarra com flores. Mas isto não é uma afirmação da “liberdade”, como acontecia com a minha geração. A nova geração exige não apenas tolerância mas quer que o resto do mundo se adapte à sua autodefinição, nem que para isso tenhamos que regá-los e adubá-los para crescerem como viçosos arbustos.

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Há quem ache tudo isto apenas uma coisa ridícula e sem propósito, mas tal avaliação revela uma falta de entendimento a respeito do espírito que anima esta geração. Eles não querem fazer parte do diálogo humano normal. Foram um passo além da minha geração, para a qual não havia impossíveis ao nível do que se podia conceber mas, ainda assim, aceitávamos usar a linguagem comum, o que nos atrelava ainda ao resto da humanidade. A nova geração afirma-se além (ou aquém) da linguagem comum. Para eles, o grito de raiva, o choro, a exibição da feiura corporal são formas de expressão fundamentais da sua autoafirmação. O grotesco e o choque destas manifestações pretendem mostrar a recusa deles em se integrarem numa sociedade que eles abominam. É uma recusa em usar qualquer linguagem humana, até para dizer “não”. O “não” que eles dizem em público é apenas um símbolo remoto do puro grito de revolta, que os não iniciados não têm condição de compreender. A linguagem que lhes é própria é animal ou até mesmo vegetal, que se impõe por ser indiscutível.

Mario Chainho é engenheiro de Telecomunicações, estudante de filosofia e professor de artes marciais.
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