"Golpe de Estado em Honduras". É a manchete de todos os meios de comunicação. Afinal, o que está ocorrendo? Desde março, o presidente Manuel Zelaya resolveu propor um plebiscito para que assembleia constituinte possibilitasse, entre outras alterações, a reeleição de presidente. Tanto o Congresso Nacional como a Corte Suprema de Justiça posicionaram-se contra a proposta.

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No dia 23 de junho, o Congresso aprovou lei que proíbe a realização de referendos ou plebiscitos 180 dias antes ou depois de eleições gerais, interceptando os planos de Zelaya.

Em virtude disso, o general Romeo Vásquez, chefe do Exército, e demais comandantes militares resolveram não entregar as urnas para votação "para não desrespeitar a lei". O presidente Zelaya destituiu general Vásquez da chefia. Os chefes da Marinha e da Aeronáutica renunciaram em protesto.

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O presidente e seus simpatizantes entraram em uma base militar e retiraram as urnas lá guardadas. A Corte Suprema decidiu favoravelmente à reintegração do general Vásquez no cargo de chefe do Exército. O presidente Zelaya afirmou que não obedeceria a decisão, porque "a corte, que apenas faz justiça aos poderosos, ricos e banqueiros, só causa problemas para a democracia."

No dia 28, Zelaya foi preso pelo Exército por ordem da Corte Suprema, por ter desobedecido à ordem judicial de não realizar a consulta.

O Congresso leu carta de renúncia atribuída a Zelaya e desmentida por este e empossou como presidente interino, Roberto Michelleti, até então presidente do Congresso. Honduras teve um longo período de ditadura militar que terminou com a eleição de uma Assembleia Constituinte em 1980 e a promulgação da atual Constituição, em 1982.

Um povo que sofreu longos anos de autoritarismo militar manifesta da maneira clara e contundente em sua Constituição que optou por uma democracia em que a alternância do poder é mandamento fundamental e intocável. Nada pode ameaçar nem de leve esta característica republicana.

O artigo 239 da Constituição hondurenha prescreve que "o cidadão que tenha desempenhado a titularidade do Poder Executivo não poderá ser presidente ou designado. Aquele que ofender esta disposição ou propuser sua reforma, bem como aqueles que a apoiem direta ou indiretamente, terão cessados de imediato o desempenho de seus respectivos cargos e ficarão inabilitados por dez anos para o exercício de toda função pública".

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Note-se que em Honduras a simples proposição da reforma, visando a um novo mandato faz cessar de imediato o exercício do cargo. O dispositivo não excepciona o cargo de presidente.

O artigo 374 prescreve a cláusula pétrea da impossibilidade de reeleição. O artigo 4º é de clareza solar ao definir constitucionalmente o delito contra a alternância do poder: "(...) A alternância no exercício da Presidência da República é obrigatória. A infração desta norma constitui delito de traição à Pátria."

Evidente que Zelaya não infringiu esta norma, queria e precisava alterá-la.

O artigo 4º estabelece: "A qualidade de cidadão perde-se: (...) 5. Por incitar, promover ou apoiar o continuísmo ou a reeleição do presidente da República;". Por outro lado, o artigo 238 arrola os requisitos necessários para ser presidente do seguinte modo: "Para ser presidente ou designado à presidência, requer-se: (...) 3. Estar no gozo dos direitos de cidadão;".

Aqui, uma enorme dificuldade constitucional para Zelaya. Talvez a maior blindagem contra a reeleição. A prova do fato, no caso notório, de que promovia e lutava por seu próprio continuísmo, faz perder a cidadania, um dos requisitos essenciais não só para assumir o cargo, mas também para manter-se nele.

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O artigo 245 esclarece "o presidente da República detém a administração geral do Estado: são suas atribuições: 1. Cumprir e fazer cumprir a Constituição, os tratados e convenções, leis e demais disposições legais". (...) "16. Exercer o comando em Chefe das Forças Armadas em seu caráter de Comandante Geral, e adotar as medidas necessárias para a defesa da República;".

O artigo 272 dispõe que "As Forças Armadas de Honduras são uma instituição nacional de caráter permanente, essencialmente profissional, apolítica, obediente e não deliberante. São constituídas para defender a integridade territorial e a soberania da República, manter a paz, a ordem pública e o império da Constituição, os princípios do livre sufrágio e a alternância no exercício da Presidência da República."

Note-se que o presidente é o comandante supremo das Forças Armadas. Estas devem obediência ao chefe de Estado, na medida em que este obedeça à Constituição e, no caso, esta obriga expressamente que as Forças Armadas defendam a alternância do exercício da presidência da República. No momento em que o presidente pretende a permanência por meio da reeleição, descumprindo normas constitucionais e decisões da Corte Suprema, a ordem de prisão emanada por este tribunal haveria de ser cumprida.

Os fatos e o conjunto das disposições constitucionais citadas mostram que em Honduras não houve golpe de Estado. Hans Kelsen ensinava que o golpe de Estado "instaura novo ordenamento jurídico, dado que a violação do ordenamento precedente implica também na mudança da sua norma fundamental e, por conseguinte, na invalidação de todas as leis e disposições emanadas em nome dela". Em Honduras, o modelo bolivariano do presidente foi repelido graças a uma Constituição prenhe de anticorpos a estancar a tentação do continuísmo e do caudilhismo latino-americano. Lá se evitou o golpe e se defendeu a Constituição e a lei.

Agora, forças internacionais terríveis levantam-se contra o "golpe de Estado". Da ONU à OEA, passando pela Aliança Bolivariana para as Américas, de Chávez, Lula e Fidel a Hillary Clinton e Obama. Não é de hoje que Honduras, um pequeno e fraco país, depende dos EUAS. No século 20, companhias bananeiras estabelecidas em Honduras punham e depunham presidentes, controlavam o Congresso, faziam aprovar leis. Mesmo no início do regime democrático nos anos 80, Honduras permitiu aos EUA o uso de seu território como base estratégica para ações contra a Nicarágua. A ONU, por decisão unânime dos países-membros, exige a restauração de Zelaya e a OEA dá um ultimato para que o governo interino o reconduza à Presidência. E o império? E Obama? E a Constituição de Honduras? E Honduras? Ora, Honduras, ora, ora, a Constituição de Honduras...

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Cicero Harada é advogado, conselheiro da OAB-SP, presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB-SP.