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Misrata tirou Guernica do esquecimento. Jun­­tas, reforçadas – apesar das sete décadas de intervalo – lembram a bestialidade guerreira contra civis

A morte nessa quarta de dois famosos fotógrafos, um inglês e outro norte-americano, vitimados por um violento ataque do Exército de Muamar Kadafi, em Misrata, trouxe de volta às primeiras páginas a "estratégia do terror" empregada pelo ditador líbio contra os rebeldes que tentam derrubá-lo.

A nefasta expressão foi usada pela primeira vez há quase 74 anos na Guerra Civil espanhola pelos generais franquistas apoiados pela Alemanha nazista para arrasar cidades e vilas em regiões que resistiam ao seu avanço. Um dos primeiros alvos da aviação nazifascista foi a cidadezinha do país basco, Guernica, de 6 mil habitantes, em 26 de abril de 1937. Calcula-se que foram mortos três quartos da sua população.

Revoltado com a desumanidade, o pintor Pablo Picasso, então exilado em Paris, produziu o seu famoso mural, "Guernica", réquiem em preto de branco convertido em protesto contra a guerra. A estratégia do terror passou no teste e foi largamente empregada por Adolf Hitler a partir de 1939 para aniquilar a Polônia e apossar-se de grande parte da Europa.

O ditador líbio está impedido pela Otan de usar a sua aviação e seus mísseis, mas não os mercenários dos países vizinhos com o poderoso arsenal de armas russas que acumula há décadas. Está com as mãos livres para quebrar o ânimo dos rebeldes que sonham com a liberdade e tentam derrubá-lo há mais de dois meses.

O fotógrafo e documentarista inglês Tim Hetherington, indicado para o Oscar deste ano por Restrepo, e o fotógrafo americano Chris Hondros, ganhador do Pulitzer de 2004, ambos de 41anos, estavam em Misrata para documentar a implementação da política de terra arrasada ordenada por Kadafi. Não poderiam supor que as suas mortes tirariam do banho-maria um dos conflitos da zona do Mediterrâneo condenados a eternizar-se pelo cansaço.

A sociedade da informação funciona na base de choques e espasmos intensos, não suporta alongamentos, precisa de desfechos rápidos, intensos, nítidos. Os déspotas regionais ora confrontados apostam justamente na volatilidade e na volubilidade da audiência mundial, certos de que a firmeza da resposta pode adiar indefinidamente os desenlaces.

Ao contrário do ocorrido na Tunísia e Egito, a insurreição contra Kadafi desenvolve-se num estado precário, fluido, sem estruturas muito definidas que precisam ser assaltadas e dominadas individualmente. Nessas condições, a vitória só pode ser alcançada pela conquista territorial, sempre dependente de recursos humanos e materiais, principalmente da pressão política mundial.

A morte dos dois jornalistas e os ferimentos em dois outros atingidos pelos morteiros de Kadafi colocaram seus flagrantes de guerra na rede mundial, reacenderam o conflito e encostaram o governo líbio na parede.

Por força do calendário e da geografia (a Líbia foi cenário das mais sangrentas batalhas de blindados da Segunda Guerra Mundial), Misrata tirou Guernica do esquecimento. Juntas, reforçadas – apesar das sete décadas de intervalo – lembram a bestialidade guerreira contra civis.

Ao reafirmar na véspera do Dia de Tiradentes seu compromisso com a defesa dos direitos humanos, a presidente Dilma Roussef recolocou o País no campo oposto das tiranias, da violência, do fanatismo e das guerras legitimadas por ideologias.

Ao vivo e em cores, Misrata combina-se ao luto de Guernica. Picasso com os seus pincéis, Heterington e Hondros com as suas câmeras gravaram para sempre o repúdio universal à estratégia do terror.

Alberto Dines é jornalista.

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