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A Torre de Babel pintada por Pieter Brueghel, o Velho.
A Torre de Babel pintada por Pieter Brueghel, o Velho.| Foto: Pieter Brueghel, o Velho/Domínio público

Guerra e Paz, livro mais famoso de Tolstói, traduz a palavra russa Mir (мир) como Paz. Na ortografia russa moderna, a palavra significa não apenas “paz”, mas também é o termo técnico para terra comunitária, sistema. É a tradução de “mundo”, na expressão “mundo virtual”. Pode significar toda a humanidade; comunidade; sentido; sentimento; história; quietude; vila; reino; universo. A palavra grega cosmos  também significa simultaneamente um local, o universo, e a paz da ordem natural das coisas: a harmonia. Tem como antônimo a palavra kaos, herdada pelo português: caos.

Quando o livro de Tolstói foi lançado, a ortografia russa soletrava diferentemente esses dois significados, “terra” e “paz”. O autor escolheu a grafia cuja tradução portuguesa ficou melhor como “Guerra e Paz” do que “Guerra e Mundo” ou “Guerra e Terra”. Ainda hoje, entretanto, os especialistas discutem essa acepção paralela, já que não apenas depois de Tolstói, mas também antes, no primeiro registro escrito de qualquer língua eslava, o eslavônio eclesiástico, uma só palavra era usada com essas duas vertentes de significado: miru significava, além de paz, comunidade e alegria.

Qualquer expressão linguística, mesmo não vindo de outra língua ou época, tem muitas interpretações. Confúcio dizia que “a Harmonia dos Mundos depende da retificação dos nomes” – ou coisa parecida, considerando a traição que é trazer para o português essa frase daquela época e língua tão distantes.

O politicamente correto endossa a pressuposição confuciana, razoável, de que a realidade possa ser alterada para melhor, a partir da retificação das palavras

Estejamos ou não citando o sábio chinês de forma correta, a interpretação é o que importa. Chamar alguém de “volumetricamente expandide” ou “capilarmente diferenciade” pode ser mais ofensivo, ou menos ofensivo, do que usar as palavras politicamente incorretas “gorda(o)” ou “careca”.

O politicamente correto endossa a pressuposição confuciana, razoável, de que a realidade possa ser alterada para melhor, a partir da retificação das palavras. Há, no entanto, o lembrete de sentido oposto, deixado por George Orwell em sua crítica feita às “democracias populares” (ou seja, as ditaduras do proletariado, as Volksrepubliks) no livro 1984.

Nas duas distopias (a livresca e a do “Socialismo Real” internacionalista ou nacionalista), imperava a “novilíngua” ou “novafala” (newspeak), uma tentativa de controlar, a partir do controle das palavras, o que podia ser dito e pensado. Havia uma “polipen” (thinkpol), a polícia do pensamento encarregada de, digamos assim, manter a “harmonia dos mundos”. Um dos exemplos da novilíngua na URSS: o comunismo dizia-se internacionalista, mas reservava a palavra “cosmopolita” para nomear de forma depreciativa os judeus que queriam emigrar para Israel.

Na distopia criada por Orwell, o Ministério da Paz era encarregado da Guerra. Isso lembra o discurso racialista, a “discriminação positiva”, como forma de acabar com o racismo. Como se o racialismo, do bem, fosse diferente do racismo, do mal, e não estivesse em contradição com a proibição constitucional (no caso brasileiro) da discriminação racial.

Criar palavras diferentes para a mesma coisa, ou nomear coisas diferentes com o mesmo nome, é um empecilho para o pensamento, para o diálogo, e para o aperfeiçoamento do pensamento por meio do diálogo. No Brasil, a palavra “fascista” foi usada para descrever pessoas como Marina Silva ou Geraldo Alckmin, a depender das conveniências eleitorais. Ora, o fascismo, que é programaticamente antiliberal, é associado erroneamente ao neoliberalismo, e usado como xingamento por partidos e pessoas antiliberais, portanto muito mais próximas do fascismo histórico (uma derivação criada pelo socialista Mussolini) do que os alvos de seus impropérios. Aliás, é curioso ver o cartaz da campanha presidencial de 2022, onde Alckmin, antes rotulado de fascista, aparece ao lado de seu antigo rotulador, sob a mensagem tipicamente orwelliana: “Vamos juntos reescrever uma nova História para a nação”. A novilíngua de Orwell tinha até um eufemismo para esse procedimento de manipulação histórica: “retificar”. Como eram “retificadas” as fotos em que Trotsky aparecia junto a Lênin, após a ascensão de Stálin. Como foi, já neste século, retificada a foto em que o Patriarca de Moscou, acusado de ser colaborador de Putin, aparece usando um relógio cujo preço não coadunaria com sua imagem de líder espiritual.

A gramática simplificada e a manipulação da informação servem, na ficção de Orwell, para limitar a possibilidade de articulação de conceitos como identidade pessoal, autoexpressão e livre-arbítrio. Seria como se a própria língua impossibilitasse a expressão de conceitos como, digamos, “racismo reverso”. Tais conceitos proibidos são chamados de “crimepensar”, já que ameaçam os fundamentos do partido Ingsoc, ou “Socialismo Inglês”. Esse tipo de abreviação, Ingsoc, é descrito por Orwell como inspirado por abreviações realmente usadas pelo totalitarismo do século XX, como Nazi (Socialismo Nacionalista) ou Politburo (Gabinete do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética). Abreviações de caráter silábico teriam o propósito de mascarar o conteúdo ideológico, eliminando as sutilezas do significado.

A novilíngua, além de ter um vocabulário cada vez mais reduzido e com menos nuanças, buscava também um ritmo staccato, onde palavras de fácil pronúncia são emitidas separadas por intervalos – como no caso dos bordões políticos, das “palavras de ordem”. Ao partido interessa a fala automática e inconsciente, em que calar o antagonismo (até o antagonismo interno de quem fala) importa mais do que com ele dialogar. Essa inconsciência não deixa de ser uma espécie de harmonia, a mesma espécie de harmonia, ou paz, encontrada nos cemitérios, e nas bolhas de informação (noosferas) onde não há o contraditório.

“Comunidades harmônicas” desse tipo dependem do isolamento, do código compartilhado, do mesmo sentimento que, nas antigas aldeias eslavas, fez das terras comunitárias sinônimo de paz. Uma bolha informacional não deixa de ser uma terra comunitária, cuja paz, porém, será desafiada pelas pressões do mundo exterior.

No Brasil, o significado da Democracia Liberal e de suas instituições fundamentais (como a liberdade de imprensa e expressão, e os limites ao STF) talvez ainda precise ser explicitado

No Brasil atual, temos aldeias informacionais polarizadas, onde os argumentos da aldeia vizinha são previamente tachados como absurdos (do latim ab surdus, “algo vindo de um surdo”, isto é, de alguém imune à argumentação).

Essa polarização é vista, geralmente, de forma pessimista, como algo relacionado à guerra. Da mesma forma, questionamentos ao STF e ao politicamente correto são vistos como uma ameaça à democracia. No entanto, essa polarização e suposta ameaça também podem ser vistas como essência mesma da democracia, algo que é contrário não à paz, mas somente à paz dos cemitérios, à opinião única dos totalitarismos.

Um e outro polo do espectro político brasileiro temiam que a vitória do suposto genocida ou da suposta alma mais honesta do mundo significasse o caminho para a deterioração do Estado de Direito. Muitos prefeririam uma terceira via. A inexistência dessa opção “perfeita”, porém, pode ser apenas a inexistência do “fim da história”, isto é, de um consenso político pós-ideológico. No Brasil, o significado da Democracia Liberal e de suas instituições fundamentais (como a liberdade de imprensa e expressão, e os limites ao STF) talvez ainda precise ser explicitado.

Sem consenso em torno da democracia que queremos, nos afastamos da possibilidade de uma política menos passional, e portanto mais tecnocrata.  A passionalidade atual seria mais bem-vinda se fosse mais focada. Mas há uma confusão, nos campos de Lula e Bolsonaro, sobre que tipo de democracia desejamos.

Ambos os candidatos são herdeiros do nacional-desenvolvimentismo, do capitalismo corporativo e de compadrio próprio da formação histórica brasileira. Nesse aspecto, não há um confronto ideológico bem-desenhado. Afinal, Bolsonaro foi da base de apoio durante todo os primeiros mandatos de  Lula. Mais do que isso, ambos contaram com o apoio condicional do mesmo “Centrão”.

Grande parte da “terceira via”, aquela eleitoralmente viável, embora mais limpinha e pomposa, não passaria de um Centrão gourmetizado

Ambos os polos têm pendores por regimes ditatoriais, e o Centrão está à vontade entre arranjos corporativos e o capitalismo de compadrio. Também se assemelham do ponto de vista do apelo popularesco “democrático”. Ambos, repito, são crias do nacional-desenvolvimentismo corporativo e autoritário hegemônico no Brasil, com raízes em Mussolini e Getúlio, e sucessores como Geisel e Dilma. Vistos assim, Lula e Bolsonaro nem são tão radicalmente antagônicos. A polarização, dadas as alianças políticas de ambos os lados, é suave, e representa um embate constitutivo da democracia. Ao contrário do que dizem os preocupados com "a crise da democracia liberal", esse embate tem contribuído, inclusive, para fortalecê-la, ao acentuar a diferença entre essa democracia liberal e outros modelos democráticos, como a “democracia popular” de tipo estalinista, a que se referem pessoas como José Dirceu e Hugo Chávez, quando dizem que lutaram e lutam pela “democracia”. Se há ameaças, não vêm das divergências entre os polos, mas do que os une, e ao Judiciário: o autoritarismo, o patrimonialismo, o compadrio.

Suponhamos a hipótese perversa de que no debate entre os polos Lula e Bolsonaro não haja um debate ideológico, mas apenas uma disputa pelo erário, um populismo comezinho aliado à ignorância e à flexibilidade ética. Mesmo por essa ótica, grande parte da “terceira via”, aquela eleitoralmente viável, embora mais limpinha e pomposa, não passaria de um Centrão gourmetizado.

Aristóteles via a demagogia como degeneração da democracia; como substância do populismo, portanto. Mas há quem veja positividade no populismo: seria um componente dialético, antídoto para a excessiva institucionalização, que reduziria a política à simples administração tecnocrática. Essa, a postura de Ernesto Laclau, expressa sinteticamente na Introdução à edição brasileira de seu  livro A Razão Populista: “ (...) o atual populismo latino-americano constitui um caminho potencialmente mais bem-sucedido para enfrentar os futuros políticos que se abrem a partir da presente conjuntura crítica.”

Seja essência ou degeneração da democracia, o populismo/demagogia é inseparável da democracia, e para combater seus males nas democracias liberais há instituições contramajoritárias, como a fixidez da Constituição e o Judiciário independente. Tais instituições refreiam, ou deveriam refrear, o jacobinismo democrata, o desrespeito às minorias, o espírito de linchamento que às vezes é exercido pela maioria.

Mesmo sem considerarmos as instituições que deveriam contrabalançar o baixo nível de reflexão da chamada “vontade popular”, podemos dizer que é ingênua a utopia de um espaço público "habermasiano", onde a razão seja o resultado da comunicação, do confronto lógico de argumentos consistentes. Esse confronto puramente racional nunca foi o único fator a gerar alinhamentos políticos. Dificilmente se pode descrever uma democracia como esse espaço asséptico onde as propostas mais embasadas são apoiadas pela massa. Nesse sentido, o populismo é sim um componente da democracia, que nunca se deu apenas entre eleitores intelectualizados, movidos por ponderações teóricas sofisticadas. Afinal, mesmo os intelectuais são passionais, ao expressarem, por exemplo, seu ódio à classe média, essa classe que pode levantar sua voz contra os aristocratas da universidade, da mídia, do empresariado ou do Governo. O nazismo e o comunismo tiveram o apoio e a colaboração ativa de intelectuais, mesmo em suas fases formativas.

Houve os que pensaram que as eleições de 2022 poderiam ter sido as mais significativas, em termos de evitar ou implantar a tragédia da degeneração democrática, como ocorre na Venezuela. Pensou-se o mesmo, nas eleições de 2018, e nas anteriores. É bom estarmos atentos para essa perspectiva trágica, mas já é trágica o suficiente a visão de que não devemos esperar grandes coisas da política, que talvez seja em grande parte caudatária dos movimentos econômicos, culturais e geopolíticos mundiais. As ditaduras da América Latina, no final do século XX, foram em grande parte derivadas do contexto da Guerra Fria. Tendo isso em vista, talvez mais importantes para o futuro do Brasil do que Lula ou Bolsonaro sejam a ascensão econômica da China e a reconfiguração de grupos como a Otan.

Concordaremos: é impossível quantificar, controlar ou prever até que ponto a ação comunicativa cotidiana, tal como ocorre durante contatos remotos ou presenciais, afeta a noosfera, o mundo informacional do qual depende a política. Esse ceticismo com relação à imprevisibilidade dos movimentos políticos é positivo, e não precisa ser, necessariamente, pessimista. A complexidade do mundo, ou do quadro político brasileiro, é reconhecida pelo temor conservador às mudanças. Esse temor deve ser respeitado, e não necessariamente implica uma visão negativa da natureza humana, ou das perspectivas do Brasil. Mesmo sem acreditar em salvacionismos utópicos progressistas ou regressistas, sem acreditar em nenhum “homem novo” socialista ou nacional-socialista, podemos apostar no aperfeiçoamento gradual das instituições e, quem sabe, até dos humanos. Mas que seja gradual, controlado, e não oriundo do caos. Evidentemente, tanto a eleição de Lula ou de Bolsonaro, quanto de qualquer outro, não determina ou impede, sozinha, a emergência do caos.

Podemos ser céticos e cautelosos com relação a grandes mudanças imediatas, ao mesmo tempo em que nos comprometemos com valores orientadores. Tais valores não precisam ser despidos de passionalidade, desde que essa passionalidade esteja aberta ao questionamento radical, isto é, sem censuras de qualquer tipo ao pensamento. Uma filosofia do senso comum (ou seja, desse misto de razão e emoção) como base da vida política é bem-vinda, venha ela de Adam Smith ou de Spinoza. Ou seja, é possível admitir a importância das paixões, mesmo que tenhamos uma postura cética. É possível ter uma visão política que não apele para determinismos históricos, e que não acredite na frase de Marx orientadora de fascistas e comunistas:  “a violência é parteira da história”.

A razão tecnocrata e a paixão demagógica, duas forças motoras antagônicas e constitutivas da democracia, não significam, necessariamente, o império esquizoide da insensibilidade e do pânico, embora eles estejam presentes em certa medida, mesmo nas democracias mais avançadas. A polarização atual, por mais agressiva e feia que nos pareça, pode ser uma evolução em relação à época pós-redemocratização, em que qualquer ideia de esquerda, só por ser de esquerda, era tratada hegemonicamente como positiva, em função da predominância marxista, na crítica à ditadura de direita que havíamos vivido. Saímos da inércia daqueles tempos a partir do momento em que uma “democracia popular” do tipo venezuelano passou a ser uma possibilidade próxima, no tempo e no espaço. Lembrando que a Venezuela teve, antes de Chávez, uma tradição democrata superior a quase todos os países latinos, e um PIB per capita 5 vezes maior do que o brasileiro. Hoje, apesar de ter as maiores reservas de petróleo do mundo, sua população disputa com os haitianos o posto de mais pobre do Continente. Quanto à democracia, apesar de Lula dizer que o país vizinho a tem em excesso, resta qualificar que tipo de “democracia” é aquela.

A política não é lugar para opiniões pacificadas, mas isso não significa que as eleições sejam decididas com base no medo irracional e em artimanhas calculistas, até porque esse pânico e essa crença em esquemas explicativos da realidade muitas vezes está mais presente na minoria intelectualizada do que na massa de eleitores.

Colocar concepções ideológicas que apontam para utopias ou catástrofes no centro do debate político aponta para soluções totalitárias: tudo se torna política, inclusive as piadas, o esporte, o entretenimento. Na esteira desse quadro, não admira que figuras como Anitta tornem-se trunfos eleitorais, mobilizando mais os eleitores do que os debates sobre propostas ou planos de governo.

É de fato difícil dialogar com quem parte de pressupostos diferentes.  Dialogar com Putin, por exemplo, que chama a guerra contra a Ucrânia de “Operação Militar Especial”, ou com quem culpa a minissaia pelo estupro. Putin, tecnicamente, parece não estar de todo errado, já que a guerra não foi oficialmente declarada. Esse tipo de interpretação, a substituição do mérito das provas pelas filigranas do processo formal, é bem conhecida dos brasileiros.

Habermas define a razão como um empreendimento coletivo, comunicacional, surgido a partir do embate entre diferentes argumentos. Dessa perspectiva, a comunicação seria um adiamento da violência: enquanto conversamos, ainda não partimos para a agressão física. Do ponto de vista liberal, qualquer pensamento e opinião, inclusive a defesa  de ilegalidades, como o aborto, as drogas, o assassinato, a pedofilia, o roubo, o nazismo ou o comunismo, seria aceitável, desde que restrita ao âmbito da liberdade de expressão.

Se “a guerra é a continuação da política por outros meios”, como escreveu o estrategista prussiano Carl Von Clausewitz, então a paz é a razão, a comunicação com os adversários, a política. Isso não significa necessariamente que a comunicação de platitudes, daquilo que é de bom-tom, politicamente correto, seja, de fato, o oposto da guerra. O politicamente correto, a novilíngua, e a Polipen, a polícia do pensamento, são similares ao recalque freudiano: algo que, por seu caráter repressor e não reconhecido, pode apenas adiar e potencializar a emersão de forças descontroladas. Uma convulsão social, por exemplo.

Apesar de reconhecer legitimidade aos que defendem o poder de censura da maioria sobre a minoria (como pode ocorrer no comunismo ou no nazismo) alinho-me no campo oposto, crendo que a plena liberdade de expressão é a mais eficaz alternativa ao conflito físico, à guerra. Defender o direito de as pessoas defenderem o nazismo, o comunismo ou a guerra, não é o mesmo do que defender o nazismo, o comunismo ou a guerra.

O século passado viu teóricos como Marcuse defendendo o fim da repressão, a liberação das forças criativas. Mas desde Foucault, aliás, desde Freud, com seu “Princípio da Realidade” equilibrando o “Princípio do Prazer”, e desde muito antes deles, a humanidade reconhece a positividade da repressão: não é à toa que se reprimem certas palavras e comportamentos. O embate entre a coação equalizadora da vontade popular centralizada no Estado e permissividade do liberalismo individualista diferenciador é a essência da democracia liberal, conceito composto de termos antagônicos: a maior maioria, encarnada pelo Estado, e a menor minoria, encarnada pelo indivíduo.

A muitos parece impróprio classificar a “democracia popular” comunista, ou a “Volksrepublik” (República do povo) nazista, como “democracias”.  Mas seus nomes fazem sentido, se nos lembrarmos de que os comunistas viam na ditadura do proletariado, ou seja, na ditadura da suposta maioria, uma expressão mais autêntica da democracia. Para os comunistas, assim como para os nazistas, a democracia liberal seria uma ditadura da burguesia, identificada, desde antes dos escritos de Marx, e também neles, com os judeus, com uma elite minoritária “globalista” controladora da imprensa e dos meios de produção.

Essa concepção totalitária de democracia, vigente em países como China, Cuba e Coreia do Norte, não está em conflito com a concepção clássica, aristotélica, que divide os regimes políticos possíveis em três, e suas degenerações: 1.monarquia/tirania; 2.aristocracia/oligarquia; 3.democracia/demagogia. O socialismo internacionalista e o socialismo nacionalista (ou racial) dizem de si próprios que sua autoridade não deriva de uma só pessoa (como nas monarquias), ou dos mais capacitados (como na aristocracia), mas do povo, da maioria. Tanto Stálin quanto Hitler eram retratados como a encarnação da vontade popular, tendo ou não o partido como mediador. A concepção leninista do Partido como “vanguarda do proletariado” foi corroborada pelo fundador do fascismo e seus seguidores, e não foi à toa que Mussolini recebeu elogios de Lênin e Gramsci, nos tempos em que o italiano, o mais importante socialista fora da União Soviética, ainda não havia se tornado competidor dos comunistas na condução das massas.

Mesmo regimes que são praticamente oligarquias, como o russo ou o cubano, ou como a necrocracia de caráter monárquico da Coreia do Norte, onde o Presidente Eterno, conforme a Constituição, continua sendo, em 2023, o falecido avô daquele que efetivamente exerce a presidência, mesmo esses regimes apontam a vontade geral rousseauniana como a fonte de seu poder, e por essa razão mantêm rituais eleitorais. Esses rituais servem para confirmar que a opinião de cada cidadão individual (fusão do súdito e do soberano, conforme a definição de Rousseau), desde que majoritária, determinará os movimentos do leviatã estatal, ou do líder supremo, seja Mao, o Grande Timoneiro, ou o Führer. Como disse Lula: “Estão lutando com um ser humano diferente. Eu não sou eu. Sou a encarnação de um pedaço de células de cada um de vocês”. Como disse Marilena Chauí: “quando Lula fala, o mundo se ilumina”.

Muitos, no Brasil e no mundo, que dizem defender a democracia (democracia popular) estão defendendo uma concepção de democracia que poderia tranquilamente ser definida como ditatorial. “Democracia”, sem um adjetivo que a qualifique (liberal ou popular) é um contrônimo: palavra que pode significar duas coisas opostas. Como se Guerra e Paz pudessem ser significadas por uma única palavra, da mesma forma que “sancionar” pode significar “apenar” ou “recompensar”, e “emprestar” pode significar “tomar emprestado” ou “ dar em empréstimo”.

“Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força”: essas são as palavras de ordem do Ingsoc, partido no poder, na distopia orwelliana. No livro, um personagem, que é lexicologista, discute seu trabalho editorial na última edição do Dicionário da Novilíngua, naquele ano de 1984: “ Lá por 2050 – ou antes, talvez – todo conhecimento real da Velhafala terá - provavelmente antes – todo conhecimento da velha língua terá desaparecido. Toda literatura do passado terá sido destruída. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron existirão somente em suas versões em Novafala, em que, além de transformados em algo diferente, estarão transformados em algo contraditório com o que eram antes. A literatura do Partido será outra. Os slogans serão outros. Como podemos ter um slogan como 'Liberdade é escravidão' quando o conceito de liberdade foi abolido? Todo o clima de pensamento será diferente. Na verdade, não haverá pensamento tal como o entendemos hoje. Ortodoxia significa não pensar – não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é inconsciência.”

Guerra e Paz: guerra como o oposto do isolamento provinciano. Guerra é paz: a fluidez dos conceitos levada ao paradoxo, ao contrônimo.

O debate sobre o significado dos argumentos e das ideologias nos leva a polêmicas infinitas. Mas enquanto permanecermos no campo do debate, enquanto pudermos expressar livremente nossos pensamentos, acho que estamos no melhor caminho. Há quem discorde.

Alessandro Gagnor Galvão é Bacharel em Jornalismo (UnB) e Mestre em Antropologia Social (UnB), com MBA em Gestão Internacional de Projetos (FGV/SP – UC/Irvine). Agradece a Vítor Sales, Fernando José Coscioni, André Magnelli, e Maristerra Lemes pelos insights que o ajudaram a escrever este artigo.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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