| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Sim, todas as famílias felizes são iguais. Mas mesmo as famílias felizes são infelizes nas heranças e nos divórcios. O amor definha. As máscaras caem. Ressentimentos longamente recalcados emergem com uma violência obscena. Irmãos inseparáveis, capazes de doar mutuamente um rim em caso de necessidade, são agora Caim e Abel nas palavras e nos atos. Amantes eternos viram inimigos eternos. Onde havia gente refinada há agora animais famintos que lutam pelos despojos da riqueza ou da descendência.

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Todos conhecemos esses casos. Alguns de nós já os viveram – como vítimas ou algozes. É por isso que o filme Custódia, de Xavier Legrand, nos é tão próximo. Aqueles somos nós. E “aqueles” são Antoine (Denis Ménochet) e Miriam (Léa Drucker). Houve um tempo em que namoraram, casaram, tiveram filhos. Quando os conhecemos, esse tempo parece tão distante como a época em que os dinossauros habitaram a Terra.

Agora, Antoine e Miriam vivem nas suas trincheiras bélicas, disputando a custódia do filho Julien (assombroso Thomas Gioria). O rapaz tem 11 anos, tem medo do pai e não quer partilhar a existência com ele. A filha também não – mas, beirando os 18 anos, é quase adulta e fará o que entender.

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O pai, compreensivelmente, não se conforma. Acusa a mãe de manipulações torpes. E pede em tribunal uma segunda oportunidade. O tribunal acede ao pedido do pai. Mas o pai não está disposto a uma segunda oportunidade; ele quer regressar à primeira oportunidade, e o filho serve como instrumento para esse passado que só existe na cabeça dele.

A derrota da minha causa não autoriza a transformação da arena pública em campo de batalha

Rejeitado pela mulher e pelos filhos, Antoine se transforma em animal selvagem. É o início da sua desintegração como ser social.

O filme de Xavier Legrand é primoroso na forma como retrata esse paradoxo assustador: o momento em que o ódio pela ex-mulher suplanta até o amor pelo próprio filho. Quem disse que o amor parental era o mais forte dos sentimentos humanos? Nem sempre, leitor otimista.

Mas Antoine, na sua brutalidade instintiva, relembra-nos de uma verdade dolorosa sobre a condição humana: só existe a civilização se existir primeiro o sacrifício. Ou, melhor dizendo, a única forma de não nos matarmos mutuamente passa pela capacidade de renunciarmos às nossas vaidades e frustrações. Freud explica isso. Mas, antes de Freud, houve Thomas Hobbes. No estado da natureza, os homens estavam entregues ao seu destino. Por isso a vida era solitária, pobre, sórdida – e curta.

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Para impedir esse negro destino, foi preciso sacrificar algo no altar do Leviatã: a liberdade radical e mortal que só temos na selva, onde “o homem é o lobo do homem”. Foi preciso, em suma, renunciar a ganhos imediatos em nome de um bem maior: a paz e a segurança possíveis para todos.

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Sem esse sacrifício, a história não teria saído das cavernas. Aliás, a própria experiência democrática depende desse sacrifício. O professor e ensaísta britânico David Runciman, em livro recente (How Democracy Ends), relembra essa verdade: um dos maiores perigos para a sobrevivência da democracia está no declínio da cultura cívica que lhe servia de suporte. Essa cultura cívica significa uma coisa: eu aceito a vontade da maioria, mesmo que essa vontade seja contrária aos meus interesses imediatos. Por quê? Porque a continuidade do regime democrático é mais importante que as minhas conveniências momentâneas.

Umas vezes ganhamos, outras perdemos. É a vida. Mas a derrota da minha causa não autoriza a transformação da arena pública em campo de batalha.

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Dizer que esse espírito de sacrifício está em regressão nas democracias ocidentais é, obviamente, um eufemismo. Mas é preciso acrescentar que essa regressão começa nas nossas próprias vidas – na forma como falamos continuamente de “direitos” sem nunca nos considerarmos sujeitos de “deveres”.

No filme, Antoine começa por aceitar as regras da sociedade estabelecida: perante o tribunal, ele parece disposto a sacrificar as suas “dores narcísicas” em nome da convivência gentil com a mulher e do afeto que sente pelo filho. Mas essa disponibilidade é uma ilusão: Antoine é incapaz de suportar as frustrações da realidade. O lobo suplanta o homem. O que antes poderia ser compromisso é agora um imperativo de destruição.

Não revelo o final. Exceto para concordar com a lição do filme: o inferno provocado pela recusa da civilização só pode ser redimido pelos instrumentos da própria civilização.

João Pereira Coutinho, escritor, é doutor em Ciência Política pela Universidade Católica Portuguesa.