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Retrato de Immanuel Kant.
Retrato de Immanuel Kant.| Foto: Wikimedia Commons

Para que servem as Ciências Humanas? Pelo menos desde 1950, e com uma insistência crescente, essa singela questão, e uma série de outras que lhe são aparentadas, têm sido colocadas aos estudiosos das humanidades. Dispúnhamos, herdado do século 19 e polido pacientemente ao longo do século 20, de um amplo e variado repertório de respostas para elas, respostas que se tornaram convincentes, populares e se enraizaram no senso comum Ocidental.

Da sociologia, aquela que nasceu a rainha das ciências, sempre esperamos muito: nada menos do que ser capaz de descrever o comportamento do homem em sociedade, estabelecer padrões para tal comportamento e, sobretudo, propor modos de intervenção neste processo que levassem à construção de sociedades mais justas, prósperas e felizes. Da filosofia, o mais sagrado dos territórios das humanidades, ainda alimentávamos há pouco expectativas iluministas: a tão nobre saber, embora cultivado por gente exótica e um tanto avoada, caberia estabelecer os alicerces do verdadeiro, do justo e do belo, dito em outras palavras, caberia dotar os homens dos instrumentos intelectuais necessários para que tivessem uma compreensão racional do mundo e agissem nele de maneira equilibrada e autônoma – sair da menoridade, como dizia Kant.

Não tem se mostrado produtivo encarar a crise como se tratasse de uma bobagem inventada por ignorantes

À história, que em tempos remotos estava incumbida da nobre missão de revelar aos homens os caminhos que Deus propunha para a humanidade, os sábios do século 19, que expurgaram Deus da esfera do conhecimento, atribuíram uma nova incumbência: trazer à luz o espírito dos povos e das nações, mostrar aqueles sentimentos e tradições que dão unidade a determinado grupo de homens – o tal passado comum – e que lhes confere um mesmo destino. A Primeira e a Segunda Guerras, no entanto, lançaram uma tremenda sombra sobre o nacionalismo, obrigando os historiadores a mudar o produto que vinham oferecendo à sociedade. Embalados pelo humanismo e pelas políticas em prol da diversidade cultural que a Unesco promoveu no pós-guerra, esses profissionais passaram a se vender como porta-vozes dos que não tiveram voz, dos que foram massacrados pela colonização e pela opressão de classe e de raça.

Recentemente, com a globalização, a imigração em massa e o desaparecimento da classe prometida – o proletariado –, os historiadores vislumbraram a possibilidade de ampliar e diversificar o público interessado nos seus serviços: apresentaram-se, então, como os restituidores das vozes dos milhares de seres humanos que foram calados pela cultura do homem branco ocidental (mulheres, nativos americanos, colonizados a leste e a oeste, homossexuais, negros, mulçumanos, e por aí vai). É o que tem sido ironicamente denominado a “história da expiação e da restituição”.

Ao que tudo indica, essas justificativas sociais de existência, que durante tanto tempo pareceram plausíveis e relevantes para os especialistas e para os não especialistas, perderam atualmente, por razões diversas mas conectadas, grande parte do poder de convencimento e da legitimidade social que desfrutavam – são os sinais dos tempos, sinais que recentemente o presidente Bolsonaro traduziu da maneira abrupta e rústica que lhe é peculiar.

A sociologia deu reiteradas provas de que, se há ordem, padrão e previsibilidade no comportamento do homem em sociedade, ela ainda não foi competente para determiná-los. Quanto à sua capacidade de encontrar soluções para o futuro das sociedades, as poucas que conseguiu popularizar no último meio século, a socialista e a multiculturalista, mostraram-se becos sem saída, povoados por ameaças diversas às liberdades individuais e por conflitos identitários sem fim. A filosofia não tem demonstrado melhor desempenho, ao contrário, depois de décadas minando a universalidade da razão, execrando o pragmatismo do senso comum, relativizando os padrões do belo e, o que não é de somenos, abusando da boa vontade do leitor com seus experimentos linguísticos – os pós-estruturalistas franceses, os multiculturalistas americanos e os expoentes da teoria crítica alemã têm muito a dizer sobre isso –, a sua autoridade desvaneceu e ela deixou de ter privilégios na orientação dos saberes e na formação dos homens  – não por acaso, os livros de Sêneca passaram a vender melhor quando incluídos entre os títulos do setor de autoajuda.

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A história segue em comboio com suas irmãs mais novas. O serviço que os historiadores querem prestar à sociedade – serem as vozes da sua expiação e da sua retratação – não encontra mais muitos interessados, pior, têm soado ao público em geral pouco verossímil, exagerado e socialmente improdutivo: criminaliza as maiorias, sataniza todo e qualquer princípio de ordenação social – são modos mais ou menos disfarçados de dominação das minorias, dos oprimidos, ou seja, são obstáculos à diversidade e à igualdade – e não colabora para a coesão da sociedade, ao contrário, a corrói.

A crise, pois, existe e, tem se mostrado pouco, pouquíssimo produtivo negá-la e recorrer a enunciados que tiveram outrora um valor de verdade mas que, nos dias que correm, soam tolos e descolados do real: “formamos cidadãos críticos, por isso somos uma ameaça ao poder”, “ensinamos os caminhos para uma sociedade mais justa”, “construímos seres humanos melhores, que respeitam a diferença”, “somos responsáveis por lançar as bases dos outros saberes, as bases de todo conhecimento possível”. Infelizmente, hoje, essa linha argumentativa de inspiração iluminista só convence os já convencidos. Também não tem se mostrado produtivo encarar a crise como se tratasse de uma bobagem inventada por ignorantes com pendores autoritários, temerosos do potencial libertador das ciências humanas. Ora, nem os empenhados anti-esquerdistas que andam por aí inventaram a crise – que bate à porta das ciências humanas pelo Ocidente afora –, nem as humanidades são tão libertadoras, se é que são em alguma medida. A situação exige mais criatividade e menos histeria.

Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil do departamento de História da Unesp (Franca) e autor de diversos livros sobre história da cultura brasileira.

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