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No episódio Battisti, o Brasil perdeu mais uma vez a oportunidade de demonstrar um mínimo de coe­­­rência e de respeito a princípios e não a conveniências político-ideológicas

Não deu outra: o então presidente Lula, no último dia de seu governo, recusou a extradição de Cesare Battisti, alegando motivos humanitários. Para não fugir ao seu estilo, agiu com esperteza, tomando a decisão na undécima hora e assim matando vários coelhos com uma só caixa d’água, como diria o saudoso linguista brasileiro Vicente Matheus. A nova presidenta pode colocar a culpa no seu antecessor e dizer candidamente ao governo italiano que teria agido diferentemente; a velha "tchurma" stalinista poderá celebrar a sua vitória, o ex-ministro Celso Amorim comprovará a máxima de Talleyrand de que as palavras foram inventadas para disfarçar os pensamentos, dissertando longamente sobre o exercício de atos soberanos; e o indefectível Marco Aurelio Garcia poderá se congratular com o também indefectível Tarso Genro pela esperteza bem-sucedida. Agora, só falta brindar a pobre vítima da perseguição política dos italianos com algum tipo de bolsa ou de auxílio financeiro e arranjar-lhe algum emprego em alguma organização, com salário pago direta ou indiretamente pelo poder público. Sou capaz de jurar que é apenas uma questão de tempo.

Essa demonstração de espírito humanitário em relação a Battisti é altamente comovente. Afinal, o que os Tarsos Genros e Celsos Amorins da vida querem evitar é que a Itália, um país primitivo, com uma pequena – quase nula mesmo – tradição jurídica, servida por uma magistratura inepta e parcial, incapaz de discernir serenamente sobre fatos delituosos – coloque na cadeia um povero ragazzone apenas por haver assassinado quatro pessoas. E onde ficam os motivos? A violência não é a parteira da história?

Nesse episódio, a única coisa a que ninguém pode se permitir é ficar surpreendido. Ou alguém duvidava que os critérios humanitários do ex-ministro Tarso Genro e de seus aliados são bastante flexíveis e amoldáveis a suas convicções políticas e ideológicas? Afinal, há três anos, os pugilistas cubanos que fugiram da delegação de seu país nos Jogos Pan-Americanos no Rio foram rapidamente localizados e colocados em um avião venezuelano de volta a Cuba por determinação de Tarso Genro.

Como era óbvio até para uma criança de colo, quando chegaram à ilha castrista, foram perseguidos e tratados como párias, até que conseguissem fugir novamente e desta vez tivessem a sorte de não cair na mão do governo brasileiro. E Lula não contribuiu para essa percepção de seletividade quando chegou a Cuba no dia mesmo em que um dissidente político morresse em função de uma greve de fome, sem que balbuciasse uma palavra de simpatia para com o morto, o qual, aliás, foi comparado aos criminosos comuns? Ou quando se recusou em interceder junto ao governo do Irã no caso da quase apedrejada acusada de adultério e depois de homicídio?

No episódio Battisti, o Brasil perdeu mais uma vez a oportunidade de demonstrar um mínimo de coerência e de respeito a princípios e não a conveniências político-ideológicas. O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade histórica de afirmar o primado da lei e a prevalência de princípios em nosso país e decidiu não utilizar sua autoridade institucional para permitir ao então presidente agir como quisesse.

Receoso das repercussões de seu ato de leniência em relação a um assassino condenado depois de um processo legal em um país com irretocável tradição jurídica e dotado de uma magistratura que é o paradigma máximo de honradez e coragem para os juízes de todo o mundo, Lula esperou até o último minuto para tomar a decisão, amparado em um parecer jurídico... de quem? Da Advocacia-Geral da União, cujo papel é exatamente esse, de encontrar fundamentações para os atos praticados pelo Executivo federal.

Na ficção e na realidade, o Brasil é o país da impunidade internacional. John Cleese, depois de dar um golpe em Londres, foge para o Brasil em Um Peixe Chamado Vanda; Alec Guiness escapa da Scotland Yard em Lavender Hill Mob para onde mesmo? Para o Rio, onde vira uma celebridade. E na vida real, não tivemos a agradável companhia de Ronald Biggs durante 20 anos, desfilando em escolas de samba e recebendo grupos de turistas em sua casa para contar detalhes de sua participação no roubo do trem postal na Inglaterra? Ou de Charles Ponzi, criador do golpe que leva seu nome (Ponzi Scheme) nos Estados Unidos, onde fez escola, sendo superado apenas por Bernard Madoff que engabelou milhares de investidores e roubou dezenas de bilhões de dólares.

No Brasil, nunca se sabe o que é mais surrealista: se a arte, que copia e caricatura a realidade ou a realidade propriamente dita. Lula, Amorim, Garcia e Genro fazem parte da realidade ou da caricatura? De ambas.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.

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