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A inteligência artificial (IA) chegou aos tribunais. O que antes parecia ficção científica hoje se consolida como uma ferramenta utilizada por tribunais superiores e pela própria administração pública para conferir celeridade e eficiência aos processos judiciais. Mas essa inovação levanta uma pergunta crucial: a Justiça pode ser automatizada sem comprometer os direitos fundamentais?
É inegável que o uso de IA no Judiciário atende a princípios constitucionais, como o da razoável duração do processo, previsto no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal, e contribui para a efetividade da prestação jurisdicional.
Ferramentas como o Victor, do Supremo Tribunal Federal, que utiliza IA para identificar a repercussão geral em recursos, demonstram o potencial dessa tecnologia em um sistema sobrecarregado por mais de 70 milhões de processos.
Contudo, o entusiasmo com a eficiência não pode se sobrepor a princípios essenciais do Estado Democrático de Direito, como a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, inciso LV, da CF), bem como o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV). Se o cidadão não consegue compreender ou contestar os fundamentos de uma decisão influenciada por um algoritmo, há violação direta a esses preceitos.
Além disso, decisões judiciais devem ser fundamentadas, conforme determina o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal. Algoritmos, por sua natureza técnica e complexa, muitas vezes funcionam como “caixas-pretas”, cujos critérios e lógicas internas são inacessíveis até mesmo para os próprios juízes. Como garantir a devida fundamentação em uma decisão construída com base em parâmetros que nem o magistrado compreende plenamente?
Outro ponto crucial é a responsabilidade. O Código de Processo Civil (CPC), em seu art. 139, inciso IX, estabelece a responsabilidade do juiz pela condução do processo. Se a IA influenciar diretamente o conteúdo da decisão, como será delimitada essa responsabilidade? O magistrado poderá alegar que apenas seguiu a orientação técnica da máquina?
A preocupação não é apenas teórica. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já publicou a Resolução nº 332/2020, que regulamenta o uso de IA no âmbito do Judiciário, deixando claro que essas ferramentas devem respeitar os direitos fundamentais, garantir transparência, auditabilidade e nunca substituir a decisão humana.
Ou seja, a IA pode e deve ser usada como apoio – jamais como substituta – do discernimento humano.
O juiz é o intérprete da norma jurídica dentro de contextos reais, sociais e humanos. E essa sensibilidade, até o momento, nenhuma máquina é capaz de reproduzir com fidelidade
O futuro da Justiça será, sim, tecnológico. Mas será também um teste da nossa capacidade de proteger garantias constitucionais em meio à inovação. Que o avanço não seja sinônimo de desumanização e que o Judiciário siga sendo um espaço onde a equidade prevaleça sobre a velocidade.
E aí fica a pergunta que não pode ser respondida por um algoritmo: queremos uma Justiça que julgue mais rápido ou uma que julgue melhor?
Dionatan Uilian Ferreira é acadêmico de Gestão Pública-UFPR.



