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Gás natural. Foto: Arquivo/Gazeta do Povo
Gás natural. Foto: Arquivo/Gazeta do Povo| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

“Criar dificuldade para vender facilidade” (ditado popular)

Existe uma frase bastante empregada por advogados e que deveria ser mais utilizada pela população em geral, dadas as atrocidades praticadas contra a ética, o conhecimento, o patriotismo e o bem neste país: Cui bono?, que significa um singelo “quem se beneficia?”

A indústria e mercado de gás natural – que, em qualquer lugar civilizado do planeta, fazem parte da indústria e mercado de petróleo – são, por si, bastante complexos. Não impossíveis, não indecifráveis, mas complexos. No Brasil, esta complexidade atravessa o limite inferior do caos, decaindo em sabe-se lá o quê. O que se sabe, com bastante clareza, é “quem”: quem se beneficia, quem está praticando malfeitos, quem é corruptor, quem é corrupto. Passiva e ativamente. Própria e impropriamente.

Para que estes contornos tão difusos se tornem claros ao leitor, comecemos do início, com a ressalva de que vamos falar apenas do gás natural movimentado em dutos.

Na indústria e mercado de petróleo, existem dois tipos de contenedores, no que tange ao gás natural: poços com gás associado e poços com gás não associado. Daí já se pode entender por que o gás natural não é commodity; quando associado ao petróleo, sua primeira função é impulsionar o petróleo para cima, fazer o “lift” do óleo cru. Neste ponto, o gás natural pode ser reinjetado no poço ou queimado nos flares. No Brasil, 78% do gás é associado ao petróleo e a vasta maioria de nossas reservas se encontra no mar, o que já caracteriza um processo mais caro de extração. Na Bolívia, para comparação, 93% do gás é não associado.

No Brasil, a complexidade da indústria e do mercado de gás atravessa o limite inferior do caos

Passemos, então, aos agentes da cadeia de gás natural.

O produtor de gás natural, que tem nesta produção um negócio, é o responsável pela retirada do gás dos poços. Para ficar bem claro: ele oferece um serviço, qual seja, a retirada do produto da terra e vende este produto a um comprador. Compra e venda: comércio. Pela prestação deste serviço, o produtor percebe remuneração.

Para que este produto seja movimentado do poço até uma Unidade Processadora de Gás Natural (UPGN) ou uma Unidade de Compressão, são utilizados dutos de transferência. Na Bolívia, como no resto da civilização, exceção feita ao Brasil, a transferência também é um negócio, em que o dono das linhas de transferência recebe dinheiro por prestar um serviço. Mais uma faceta de compra e venda: comércio.

A Unidade Processadora de Gás Natural é onde o gás natural associado ao petróleo é desidratado; o condensado e petróleo são retirados, o gás passa por processo de descarbonatação e, quando é o caso, por dessulfurização. No jargão da indústria, é onde o gás natural é “empobrecido”. Novamente, exceção feita ao Brasil, a UPGN também é um negócio, em que o dono das instalações recebe dinheiro por prestar um serviço. Mais uma faceta de compra e venda: comércio.

Uma vez processado (quando passa pela UPGN) ou não, o gás natural passa pela unidade de compressão, onde é comprimido para entrada no gasoduto de transporte. A compressão também é um negócio, em que o dono das instalações recebe dinheiro por prestar um serviço. Mais uma faceta de compra e venda: comércio.

Uma vez que as primevas características físico-químicas do gás natural estejam adequadas ao mercado a que se destinam e já próxima ao final da cadeia de gás natural, ele é movimentado por meio de um gasoduto de transporte. Especificamente no que tange ao Gasbol, existem duas transportadoras operando o duto: do lado boliviano, a YPFB transportes; do lado brasileiro, a TBG.

As estações de entrega ou city-gates, ou Estações de Transferência de Custódia (ETCs) são os pontos, próximos aos centros consumidores, onde o gás natural passa da custódia do transportador novamente ao carregador, que pode ser a distribuidora, responsável, a partir deste ponto, por fazer o gás chegar ao consumidor final através de sua rede de distribuição; ou um consumidor final que pode receber o gás a partir do city-gate por um duto de transporte exclusivo (duto inicialmente dedicado) ou uma planta de GNC, GTL ou GNL, onde o gás também pode ser transmitido por um duto de transporte exclusivo, comprimido ou liquefeito e conduzido ao consumidor final por carretas ou navios. As estações de entrega têm equipamento de filtragem, aquecimento, regulagem e medição.

E aqui chegamos ao imbróglio brasileiro. Em qualquer lugar civilizado do planeta – sinto muito pelo tédio provocado pela contínua repetição – existe uma coerência relativa à regulação da indústria e mercado de petróleo e gás natural. Aqui, evidentemente, não. Existe a Agência Nacional do Petróleo, órgão federal e encarregada-mor dos assuntos petrolíferos e, concomitantemente, consta na Constituição Federal que “cabe aos estados explorar os serviços locais de gás canalizado”. Evidentemente, este artigo da Constituição foi proposto por um apedeuta. Ainda assim, caberia aos estados explorar, mas não regular, os serviços locais de gás canalizado. Evidentemente, há conflito entre a ANP e as agências reguladoras estaduais.

As experiências dos Estados Unidos e da Inglaterra são referência para processos de desregulamentação para o resto do mundo. Em geral é a atividade de transporte que sofre mais impacto quando submetida à concorrência, por ser o seguimento da cadeia mais sujeito às especificidades de monopólio natural. Assim, é necessária a existência de um órgão regulador governamental para assegurar a introdução da concorrência e proteger os interesses do consumidor.

As experiências dos Estados Unidos e da Inglaterra são referência para processos de desregulamentação para o resto do mundo

Por outro lado, é preciso que os atores envolvidos na fiscalização, ou seja, no desempenho das funções de “agente regulador”, assumam o compromisso moral de remover não apenas as barreiras institucionais que impedem o processo de concorrência, destituindo as empresas já instaladas do seu antigo poder monopolista ou oligopolista dentro do novo modelo competitivo, como também garantir a idoneidade de seus próprios funcionários, uma vez que a agência reguladora é autogestora por definição.

A experiência no Reino Unido ilustra bastante bem a questão. Durante a década de 1980, o mercado de gás natural do Reino Unido não tinha quaisquer mecanismos que possibilitassem a competição no mercado de gás natural. Apesar da distribuição já estar então desregulamentada e a concorrência ser aberta a fornecedores independentes, a BG, que foi privatizada em 1986, manteve-se como monopolista em todos os segmentos do mercado.

Em 1991, um relatório do Office of Fair Traiding (OFT), o departamento de proteção ao consumidor, obrigou os produtores a vender no mínimo 10% do gás produzido no Reino Unido para fornecedores independentes, disponibilizando aos mesmos o acesso à produção. Também determinou que a BG deveria reduzir sua participação no mercado industrial para o máximo de 40% até 1995. Com relação ao transporte, foi implementada uma agência reguladora, a Office of Gas Supply (OFGAS), com o objetivo de garantir transparência e igualdade de condições aos fornecedores independentes.

A reestruturação que promoveu a entrada de novos competidores trouxe benefícios aos consumidores, pois os preços do gás natural caíram, em termos reais, cerca de 50% entre 1990 e 1997. O consumo neste mesmo período aumentou 60%. Em 1990, a BG detinha 93% do fornecimento de gás natural para grandes consumidores industriais. Em 2005, sua participação neste mercado era de 19%.

Aqui acho que cabe a expressão Cui Bono? Em 31 de outubro de 20, o II Concurso Aberto ANP/TBG (que na verdade seria o IV, e todos falharam) foi suspenso. A razão? Uma exigência do Cade frente ao TCC firmado com a Petrobras. Estranho? Estranhíssimo! O Cade é uma instituição que deve (ou pelo menos deveria) responder as necessidades de regulação do mercado; não é o Tom Cruise de Minority Report. Por que o Cade assinaria qualquer termo preventivo com a Petrobras?

Muito bem: no dia 23 de dezembro de 2019, os esforçadíssimos funcionários públicos da ANP comunicam a retomada da chamada pública do Gasbol. No mesmo dia 23, os também aplicadíssimos funcionários da TBG – estes, com alguma dificuldade de entendimento – anunciam o “resultado” da Chamada Pública ANP 01/2019, em que a Petrobras impera, com 18 MMm3/dia de transporte de gás natural, e a Gerdau deve resolver todos os seus problemas relacionados a um preço abusivo de gás, com o direito de trazer 8,5 mil m3/dia de gás natural boliviano. O banho e o aquecimento das marmitas dos funcionários do grupo estão garantidos!

Note bem, dileto leitor, que a razão da suspensão do II Concurso Aberto havia sido a questão do chamado monopólio da Petrobras, mas no resultado (TBG)/retomada (ANP) do processo, a Petrobras obteve praticamente toda a capacidade disponível.

No site da TBG, foi anunciada a Chamada Pública 2020, para capacidade incremental. Fato: certamente, por conta da rapidez com que tudo foi feito – provavelmente não deu tempo de os funcionários da TBG comprarem os presentes de Natal –, a TBG esqueceu de combinar com a ANP, uma vez que a chamada pública para a capacidade incremental deve necessariamente partir da ANP. Se isso não for suficiente para caracterizar “imbróglio”, tem mais: a TBG está lançando esta nova proposta, de capacidade incremental, após ter ignorado completamente a razão primeira da suspensão do II Concurso Aberto: a situação entre Cade e Petrobras (sim, leitor, estamos no meio de um quadro de Salvador Dalì, com Nelson Rodrigues como narrador), e melifluamente assustando o grande consumidor, interessado na importação direta, colocando toda a insegurança do processo na “crise boliviana”. Ora, se falta gás natural para o autoimportador, certamente faltará também para o carregador principal.

A situação na Bolívia está totalmente sob controle, com indústrias brasileiras já em fase avançada de negociação de importação do gás natural boliviano

Mas isso não é tudo. Atentemos para o trecho bipolar do termo conjunto ANP-Cade: “Tendo em vista a notória situação política da Bolívia, que se caracteriza como caso fortuito, para a retomada do processo, será necessário celebrar um Termo de Compromisso entre a ANP, Petrobras e TBG. Tal termo obrigará a Petrobras a renunciar à capacidade de transporte que exceder o volume de gás natural indicado no item 2.5.4 do TCC, e determinará a realização de nova Chamada Pública pela ANP, em momento que a agência julgar oportuno, para contratação da capacidade de transporte renunciada pela Petrobras. Nesse novo processo, a Petrobras não poderá participar e os participantes que arrematarem a capacidade renunciada firmarão contratos de transporte com a TBG com vigência até 31 de dezembro de 2020.

O termo disporá ainda que, caso não consiga aditar o contrato de compra de gás natural (Gas Sales Agreement – GSA) firmado com a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) em razão da crise política boliviana, a Petrobras se compromete a realizar oferta de gás natural boliviano ao mercado, a ser supervisionada pela ANP, no ponto de recebimento de Mutum, em condições pactuadas entre ANP e Petrobras.

A partir do estabelecimento deste Termo de Compromisso, além de finalizar o processo de Chamada Pública n.º 01/2019, a ANP espera sinalizar ao mercado a continuidade do processo de abertura do mercado de gás, um dos pilares do Novo Mercado de Gás.”

Em qualquer lugar civilizado do planeta existe uma coerência relativa à regulação da indústria e mercado de petróleo e gás natural. Aqui, não

É sério isso? Eles se reuniram em uma roda de LSD? Ou terá sido peiote? Isso não faz o menor sentido, além de estarem todos, nitidamente, entrando na seara do Itamaraty, ao explorar, com tamanha segurança e conhecimento de causa, uma crise política em um país que não o nosso. Outrossim, a situação na Bolívia está totalmente sob controle, com indústrias brasileiras já em fase avançada de negociação de importação do gás natural boliviano.

A nova (TBG)/retomada (ANP) da chamada pública é tão eficiente que, depois de 20 anos de absoluto engessamento do mercado, as regras da TBG determinam que, para a capacidade incremental, os carregadores – já evidentemente habilitados – terão até o dia 15 de janeiro de 2020 para manifestar interesse, o que, à primeira vista, inviabilizaria a entrada de indústrias interessadas, mas não ainda habilitadas, no processo!

O que ANP/TBG/Cade ganham com isso? A resposta é bastante simples: o privilégio dos comercializadores que, por sua vez, privilegiam as distribuidoras estaduais e a atual situação corrupta, ineficaz e terrivelmente danosa ao país. Por quê? Ora, meu caro leitor, em Passárgada, o que importa é ser amigo do rei!

Patrizia Tomasi-Bensik é membro do comitê executivo do ZerO2Nature.

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