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Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash

Qual o papel do cidadão comum em uma democracia? O que justifica uma grande meio de comunicação substituir os termos “assaltantes” ou “ladrões” por “vulneráveis”? Como é possível um professor universitário afirmar que é a favor do assalto?

Há muito tempo, Ricardo Dip e Volney Moraes Jr, ex-desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, denunciavam a ambiguidade com que alguns intelectuais brasileiros definiam o papel do povo brasileiro no espaço da cidadania.

Eles perceberam que esses intelectuais costumavam ter grande consideração com a vontade do povo brasileiro apenas quando essa vontade coincidia com o que eles pensavam. Caso contrário, esse mesmo povo deixava de ocupar posto respeitável no espaço do processo democrático para se tornar um populacho de vingadores, bando de “paranoicos” sedentos de sangue, um aglomerado de ignorantes que não possuem capacidade de exercer qualquer papel no tracejar de políticas criminais, por ser tema supostamente interdito ao cidadão comum e reservado apenas aos poucos iluminados da intelligentsia brasileira.

Para maioria dos brasileiros, o criminoso não é vítima, e sim, um indivíduo comum, capaz de exercer a livre escolha, incluindo a de se afundar na delinquência selvagem.

Essa ambiguidade de tratamento é evidenciada quando percebemos as frequentes notas públicas de entidades não governamentais, integradas por especialistas em segurança púbica, membros da academia e até magistrados, disparando pesados ataques contra quaisquer projetos de lei lançados no Congresso Nacional que busquem atender as aspirações coletivas da maioria esmagadora do povo brasileiro em combater o banditismo violento e o estado de impunidade que domina nosso país.

O Congresso Nacional sabe, e sabe muito bem, o que o povo pensa a respeito da segurança pública. Mais de 87% dos brasileiros defendem a redução da maioridade penal. Três em cada quatro brasileiros acreditam que a punição adequada para um estuprador seria a pena de prisão perpétua. Diante do estado de violência desenfreada em que se encontra o país, mais da metade já apoia a pena de morte, número que vem crescente assustadoramente a cada ano.

Por que, então, medidas práticas, reais, factíveis e menos drásticas, com grande potencial de redução dos índices da criminalidade violenta e forte apoio popular, como os projetos de lei que tratam da prisão em segunda instância, da exigência de exame criminológico para progressão de regime, da vedação de penas em meio aberto para criminosos dotados de periculosidade, da redução da maioridade penal ou do fim das saídas temporárias, por exemplo, não são aprovados no Congresso Nacional?

A resposta pode estar no chamado “lobby da insegurança pública”. O termo foi cunhado por Georges Fenech, ex-juiz de direito francês e autor de diversos estudos criminológicos, que na década de 90 identificou no Parlamento, na mídia e nas universidades de seu país, interesses ocultos de determinados grupos que buscavam incentivar motins e pequenos delitos de modo a fomentar a instabilidade social.

Esses grupos, segundo Fenech, muito ativos na intelligentsia midiática, nos meios políticos, judiciais, sindicais ou associativos, sustentavam que a sociedade francesa era a única responsável pelos crimes praticados pelos delinquentes porque ela própria gerava desigualdades sociais. Esta corrente de pensamento único, que influenciou por algum tempo as universidades francesas foi chamada por Fenech de “cultura da desculpa”, uma espécie de desresponsabilização generalizada dos criminosos, que segundo o autor, teve forte influência na França desde a década de 70 até o final do século XX.

No entanto, passados os efeitos da segunda grande guerra, notou-se que riqueza e abundância, além da expressiva melhora dos indicadores sociais obtidos após a forte recuperação econômica da Europa ao final do século XX, não vieram acompanhados da redução da criminalidade. Pelo contrário, os números foram inversamente proporcionais. Na França, os índices de crimes como estupros, roubos e homicídios cresceram exponencialmente no período, demonstrando a deficiência das teses criminológicas que apontavam a pobreza e o desemprego como principais causas do aumento da delinquência violenta, teoria que no Brasil é sustentada pela chamada “Criminologia Crítica”, “Radical”, “Marxista”, ou “Nova Criminologia”, fortemente propagada e, ao que parece, dominante nas universidades brasileiras.

Esse é o motivo pelo qual as grandes democracias ocidentais, apesar da abundância e riqueza econômicas, não renunciaram ao cárcere punitivo como instrumento de controle da criminalidade, pelo contrário, recrudesceram as penas repressivas a partir do final do século XX. A reintrodução da prisão perpétua em 2015 no Código Penal Espanhol, as penas relativamente indeterminadas em Portugal, as leis de tolerância zero alemãs de 1998 contra os agressores sexuais e outros delinquentes perigosos, a previsão de prisão permanente para criminosos violentos na França e Itália, e, por fim, a manutenção da pena de morte até os dias atuais em países como Japão e EUA, demonstram que todas as nações de primeiro mundo possuem tratamento repressivo penal muito mais severo do que o Brasil, recordista mundial em crimes violentos como feminicídio e estupro.

Por aqui, é de se questionar se parte desses intelectuais, assim como ocorreu na França, não estão a esconder algum tipo de preconceito ideológico contra o modelo econômico vigente, buscando fomentar e perpetuar o caos da violência urbana. A criminalidade desenfreada seria o preço a pagar pelas vítimas e por toda a “sociedade capitalista opressora”, causadora das desigualdades sociais – ainda que as vítimas, em sua grande maioria, sejam oriundas das camadas de baixa renda da população. Ricos e pobres deveriam suportar o custo da criminalidade ao mesmo nível que um acidente da estrada ou uma doença do capitalismo moderno.

Para buscar seu intento, ONG’s e entidades de classe – que não representam a maioria da população – rotulam rapidamente de ineficientes, retrógadas, até mesmo de maldosas e desumanas, quaisquer iniciativas que busquem adotar mais rigidez no tratamento do banditismo violento, contando com auxílio de parte da mídia engajada e da academia.

“Redução da maioridade penal?”, pergunta o cidadão comum atormentado pela violência. “Não resolve o crime”, responde o especialista. “E restringir ou excluir regimes abertos para criminosos violentos e perigosos?”, insiste o cidadão sofrido. ”Não diminui a violência”, responde o expert. Aumentar as penas? Nem pensar!

A criminalidade desenfreada seria o preço a pagar pelas vítimas e por toda a “sociedade capitalista opressora”, causadora das desigualdades sociais.

Mas então qual medida pode resolver então?A resposta dos intelectuais é de que se trata de um problema complexo e que a solução também o é. Em seguida, ao invés de oferecer medidas concretas para mitigar a violência urbana, o penalista moderno passa a divagar sobre abstrações teóricas soltando chavões como “educação”, “inteligência policial, “emprego”, em um tautologismo enfadonho, sem nunca apontar soluções factíveis para o cidadão comum, que junto com sua família, estão sofrendo – agora, neste exato momento – as consequências da violência diária que tomou conta do país.

Curiosamente, talvez por sofrer na pele os efeitos da violência, o cidadão médio brasileiro, apesar de bombardeado com tardo-modernas teses da criminologia crítica através da grande mídia, já há muito superadas em países como França, Espanha, Itália, Japão e Estados Unidos, não tem sido receptivo a essas teorias, postulando tratamento cada vez mais rígido e medidas efetivas tendentes a dissuadir e conter o criminoso violento.

Para maioria dos brasileiros, o criminoso não é vítima, e sim, um indivíduo comum, capaz de exercer a livre escolha, incluindo a de se afundar na delinquência selvagem. Curiosamente, as pesquisas de opinião apontam que os integrantes das camadas menos favorecidas rechaçam ainda com mais força quaisquer teorias que consideram a criminalidade como uma espécie de redistribuição de bens em favor dos oprimidos. Eles são os que clamam, ainda mais fortemente, por leis mais duras contra a criminalidade violenta.

No entanto, apesar de desmascarado o falso humanismo daqueles que veem na criminalidade uma legítima forma de violência reparadora de injustiças sociais – ou até mesmo uma lógica no assalto – é desconhecido o motivo pelo qual o lobby da insegurança pública possui tão forte influência sobre os integrantes do Congresso Nacional, ao ponto de desconsiderar as reivindicações coletivas da verdadeira vítima da criminalidade violenta: o cidadão comum brasileiro.

Filipe Regueira de Oliveira, graduado em Direito, possui pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal e MBA em Segurança Pública. É promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco e autor do livro “O Brasil prende demais? Reflexões sobre a prisão” pela editora EDA.

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