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Detalhe da escultura de Rodin,
Detalhe da escultura de Rodin,| Foto: Daniel Stockman/Wikicommons

Quem frequenta as redes sociais certamente já se deparou com inúmeras discussões a respeito da liberdade de expressão e seus limites. Os pretextos que desencadeiam o bate-boca são variados: a fala de um político, uma apresentação humorística, um artigo escrito em um jornal de grande circulação, um comentário em um podcast etc.

Essas discussões costumam gerar mais calor do que luz, e a rapidez com que são substituídas pela polêmica do dia seguinte dificulta a tarefa de avaliar a qualidade dos argumentos ferozes do dia anterior. Mas, como podemos supor já de saída, esses argumentos são em geral bem ruins: formulados às pressas, são mais palavras de ordem do que boas razões; notabilizam-se mais pelo volume do que pela qualidade. Sua popularidade, porém, oferece a oportunidade de tentar mostrar por que falham. O que pretendo fazer neste espaço é criticar as posições pró-censura mais comuns encontradas nas redes sociais. Minha conclusão é a de que algumas precisam de mais substância para convencer e outras falham completamente, devendo ser abandonadas.

Antes disso, porém, esclareço brevemente alguns pontos. Por que pretendo criticar somente posições pró-censura? A principal razão é eu mesmo ser um defensor de posições muito permissivas sobre a liberdade de expressão. Não nego que há vários maus argumentos em favor do que defendo e acredito que eu poderia avaliá-los com algum proveito, mas prefiro deixar a tarefa para quem genuinamente defende posições mais restritivas. Por que analisar argumentos sabidamente fracos ou, na melhor das hipóteses, incompletos? Porque, infelizmente, maus argumentos podem moldar os termos do debate público.

Enumero então sete exclamações comuns que encapsulam más defesas do silenciamento. Esse silenciamento pode ser por via jurídica, sanção social ou uma mistura de ambos:

  1. “Isso que foi dito não é opinião, é crime!”
  2. “Se você diz que a defesa de X deve ser permitida, você defende X!”
  3. “Sem restrições significativas, as pessoas abusarão da palavra!”
  4. “Permitir que se diga X causa Y, que é algo nefasto!”
  5. “Essa visão sobre a liberdade é uma tara de libertários americanos!”
  6. “Não devemos ofender os outros!”
  7. “A liberdade de expressão tem limite!”

A exclamação 1

A exclamação 1 normalmente é usada quando algum posicionamento especialmente ofensivo ganha atenção pública. Caso alguém diga que as mulheres devem ter um papel diferente dos homens na sociedade (pense, por exemplo, em um pastor dizendo algo assim), não demorará muito para alguém exclamar que esse posicionamento não é uma opinião, mas sim um crime.

Descritivamente, 1 enuncia uma falsidade. É claro que a afirmação do pastor é uma opinião. A definição dicionarizada de “opinião”, segundo a qual uma opinião é um modo de ver e de julgar, é compartilhada por seu uso comum: perante um modo de ver que não gostamos, costumamos dizer algo como “mas isso é apenas a sua opinião”, ressaltando que há outros modos, talvez melhores, de ver alguma coisa. E opiniões podem ser inócuas ou chocantes, inteligentes ou estúpidas. A exclamação de 1 parece implicar a ideia extravagante de que, acima de certo limiar de ofensa, um modo de ver e de julgar deixa de ser uma opinião, como se não fosse possível haver modos de ver e de julgar chocantes.

Mas acredito que há aqui uma sutileza conceitual que vale discutir, mesmo que de modo especulativo. Em 2016, Nick Haslam publicou artigo sobre o fenômeno da deriva conceitual. A ideia básica, como ele mesmo diz, é a de que “conceitos que se referem a aspectos negativos da experiência e comportamento humanos expandiram-se de modo a abranger um âmbito muito maior de fenômenos do que era o caso antes.” Assim, coisas que no passado não seriam descritas como trauma, dano ou violência agora o são. Um efeito previsível disso é que, se algo novo passa a fazer parte do âmbito do conceito de violência, a conotação trazida pela própria ideia geral nos incentiva a lidar com a novidade como se ela fosse uma de suas instâncias. Assim, se violência é algo que queremos impedir e uma opinião é agora uma instância de violência, a perspectiva de silenciá-la ganha mais plausibilidade, dado que fazê-lo é uma forma de conter a violência.

Quando observamos 1, contudo, vemos que ela expressa a ideia de que o conteúdo suprimido não é uma opinião. O conceito de opinião, assim, parece ter sofrido uma retração em parte do discurso comum, e acredito que Haslam ajuda a iluminar como essa retração particular se relaciona com a expansão que ele nota. Uma forma psicologicamente eficiente de resolver a tensão entre nossa secular presunção favorável à opinião livre e o aumento progressivo da percepção subjetiva de violência é excluir do conceito de opinião as suas instâncias mais desagradáveis e reinseri-las dentro do crescente domínio do conceito de violência e, logo depois, daquele de crime. O grande problema é que a popularização da censura sob a impressão de que o que é suprimido não é uma opinião (quando é) não é só um erro descritivo motivado por sensibilidades psicológicas, mas também uma forma sutil de erodir a presunção em favor da liberdade de opinião, pois a opinião censurada sai da esfera protetiva que associamos ao conceito geral correspondente. No fim, quem exclama 1 foge da tarefa mais difícil de defender que esta ou aquela opinião deve ser proibida enquanto opinião. Um argumento robusto é um que sustentaria que, apesar da presunção favorável à liberdade, a balança pesa contrariamente a certas opiniões. Formulá-lo é uma tarefa mais difícil, entre outras razões porque um dos fundamentos do direito à opinião é um ideal de autonomia individual, segundo o qual um indivíduo (e cidadão) é completo na medida em que pode expor livremente o que pensa.

A exclamação 2

A exclamação 2 (“Se você diz que a defesa de X deve ser permitida, você defende X!”) parece-me menos comum, mas como ela ocorre aqui e ali, vale a pena discuti-la brevemente. Basta pensar um pouco para ver que uma coisa não se segue da outra. Por exemplo, podemos defender o direito à defesa das drogas sem que sejamos entusiastas delas. Logo, a proposta de que uma pessoa deve ser punida porque celebrou X fracassa caso dependa dessa interpretação de 2.

Há, porém, uma leitura um pouco mais interessante de 2. É possível qualificar o sentido do segundo uso do termo “defender” e dizer que, se a pessoa concorda com a permissão da defesa de X, ela aceita também que a opinião favorável a X possa circular livremente e influenciar pessoas, naturalizando-se, talvez, como aceitável — e isso, o compromisso com a possibilidade de normalização, deveria ser proibido. Essa interpretação de 2 tem em princípio alguma plausibilidade, pois, realmente, haveria algo de anormal em um compromisso com a permissão da defesa de X que, nesse sentido mais modesto, não aceitasse a defesa de X como parte do panorama social.

O problema é que essa interpretação é modesta demais para justificar sanções. Tentar fazê-lo cria alguns problemas. O primeiro, mais prosaico, é que há várias razões em favor da circulação de uma ideia detestável. Pode-se defender, por exemplo, que permiti-la é uma forma de trazê-la à luz, tirando-a de uma clandestinidade na qual não é disputada. Ora, censurar um argumento desse tipo seria uma tolice autoritária. O segundo problema, contudo, é mais drástico, pois ele é uma generalização do primeiro. Se interpretarmos uma postura mais permissiva a respeito da liberdade de expressão como algo que acarreta não apenas a permissibilidade da defesa de X, mas também da defesa de P, Q, R, S, T, U e V, o silenciamento com base nessa nova interpretação de 2 parece colocar em risco até a enunciação de uma tese filosófica mais geral, ou ao menos uma forma de enunciá-la.

A exclamação 3

Chegamos, então, à exclamação 3, que pode ser detalhada assim: “se as pessoas falarem o que bem entenderem, acabarão por expressar todo tipo de conteúdo odioso. As pessoas não são anjos, precisam de restrições sociais e, acima de tudo, legais.” É verdade que as pessoas não são anjos, e talvez seja verdade que, em um ambiente mais livre, elas expressarão um punhado de opiniões odiosas e disparatadas.

O problema do argumento, no entanto, é um pressuposto tácito que pode ser descrito a partir de uma observação do filósofo Christopher Freiman. Freiman observa que vigora no mainstream da filosofia política anglo-americana (dominada por muito tempo pela influência de John Rawls) um modelo segundo o qual o estado e seus agentes são idealizados e os agentes privados são egoístas e irracionais. Nesse modelo assimétrico, é fácil extrair conclusões que agigantam o papel do estado, especialmente em questões econômicas. Quando rejeitamos a assimetria, diz Freiman, percebemos várias situações em que as razões pelas quais as ações estatais são necessárias são as mesmas pelas quais elas provavelmente não vão funcionar. Isto é, as regulações são necessárias porque as pessoas agem mal; porém, uma vez que elas agem mal também enquanto agentes públicos, provavelmente haverá abuso e negligência.

Nos debates populares sobre a liberdade de expressão, os defensores da censura costumam desconsiderar os custos da ação de agentes públicos não idealizados, o que lhes permite chegar à sua conclusão com uma facilidade artificial. Claro, disso não se segue que o regramento nunca é justificado. Há casos em que os custos de não impor regras são certamente maiores do que o de impô-las. A proibição da calúnia é um bom exemplo. Porém, quando o ânimo legiferante chega a formas de expressão cuja avaliação é mais difícil, como a sátira, a crítica dura e a ofensa, as oportunidades para a aplicação arbitrária ou enviesada da censura se multiplicam. Além disso, costuma-se negligenciar os custos potenciais da deriva conceitual por parte dos próprios agentes do estado. Tente imaginar o estrago causado por uma lei na qual há instâncias muito alargadas de conceitos como dano e violência. Aliado ao poder coercitivo do estado, o limite da patologização da experiência comum é a paralisia da energia discursiva da sociedade.

A exclamação 4

Talvez a exclamação mais interessante tratada aqui seja 4 (“Permitir que se diga X causa Y, que é algo nefasto!”). Nos debates do dia a dia, ela corresponde a um mau uso do Princípio do Dano formulado por John Stuart Mill. Segundo Mill, “... o único propósito pelo qual o poder pode com justiça ser exercido sobre qualquer membro de uma sociedade civilizada é o de impedir danos aos outros.” Aplicado à expressão, o princípio acarreta que sua supressão só é justificada quando a enunciação causa danos a terceiros. E não é todo tipo de dano que conta aqui, pois o que Mill tem em mente é o dano físico. Para ele, você pode dizer em um jornal que empresários exploram a miséria dos pobres. O que você não pode fazer, contudo, é incitar uma turba raivosa em frente a casa de um empresário. Nesse cenário, o dano à integridade física de uma pessoa é provável demais para ser tolerado. Muito embora haja alguma discussão recente a respeito do escopo adequado do conceito de dano, o que discuto agora não depende de tornarmos o conceito mais preciso.

O problema, enfim, é que 4 quase sempre é uma petição de princípio relativa ao Princípio do Dano, pois o dano causado pela expressão controversa não é demonstrado, mas sim pressuposto desde o início. A guerra contra o humor é um bom exemplo desse modo de argumentação em que se ganha o debate sem entrar em campo. Afirma-se, com pobreza de indícios e excesso de convicção, que piadas matam e fim de papo. E mesmo o argumento mais sutil de que a permissão de opiniões detestáveis teria o efeito de normalizá-las não costuma vir acompanhado de bons indícios. O vínculo causal entre permissibilidade e normalização, mesmo que plausível, torna-se algo que devemos simplesmente aceitar, como se não pudesse haver diferentes motivos, às vezes difíceis de detectar, por trás da normalização de uma opinião: por exemplo, o ressentimento social gerado por questões materiais ou a leniência do sistema penal com a criminalidade violenta. O ponto, em suma, é que “X causa Y no mundo social” é uma afirmação empírica, não a priori. E um bom argumento empírico pró-censura deve satisfazer o que se espera de um argumento empírico: apresentar indícios. Não estou dizendo que essa tarefa é impossível. Recorrendo a ferramental de ponta das ciências sociais, um trio de pesquisadores argumentou que a retórica de Bolsonaro induziu as pessoas a comportar-se de maneira arriscada durante a pandemia. Podemos até rejeitar um argumento que proponha a censura desse tipo de retórica quando usada por uma pessoa influente, mas ao menos o adversário terá entrado em campo.

O principal risco da argumentação frouxa sobre causas vem de seu uso por legisladores e magistrados. Aqui, não atentar ao ônus que recai sobre um argumento empírico é um salvo conduto para a liberalidade especulativa em contextos nos quais documentos normativos são escritos e aplicados. Nesses casos, afirmar que qualquer coisa causa qualquer coisa sem que causa alguma seja provada é perigoso porque o resultado disso é a distribuição arbitrária de punições, multas, apreensões, indenizações etc. (Noto de passagem a prática similar que é o mau uso de termos com conotação causal, como “atentar” ou “atentado”. Em um ambiente discursivo saudável, esses termos seriam usados para designar ações, bem-sucedidas ou não, que tivessem perspectiva real de causar algum estrago naquilo contra o qual se atenta. Mas o espírito do tempo é tal que atentado é cada vez mais um delito verbal cometido em recantos da internet.)

A exclamação 5

A exclamação 5, por sua vez, é muito comum entre liberais de esquerda. Seu propósito é sugerir que a postura mais permissiva a respeito da liberdade de expressão é tara de um subconjunto muito restrito de liberais, os libertários. Nessa concepção, libertários são um punhado de esquisitões que idealizam os EUA e estão dispostos a defender a liberdade de expressão a qualquer custo. A ideia é a culpa por associação: não devemos levar a sério quem pensa como os libertários. Afinal, esses malucos pensam que se pode dizer praticamente qualquer coisa, mas você não quer estar na companhia de malucos, quer? Defender a censura do dia, então, torna-se coisa de gente equilibrada.

Ao contrário das exclamações anteriores, acredito que o problema com 5 é mais simples: falta de curiosidade intelectual. Não é o caso de detalhar as nuances da tradição filosófica do liberalismo americano, mas é possível afirmar que o que realmente distingue os liberais mais à esquerda daqueles mais libertários não é uma divergência a respeito da liberdade de expressão, mas o excepcionalismo econômico dos primeiros. Filósofos como John Rawls, Thomas Nagel e Ronald Dworkin, por exemplo, notabilizam-se por relativizar direitos de propriedade, e não a liberdade de expressão ou outras liberdades civis. A tese de John Rawls sobre a liberdade de expressão, embora difícil de determinar nos termos de sua teoria da justiça, sugere uma compreensão permissiva a ponto de acomodar até mesmo o discurso de ódio. E é exatamente essa postura que ele demonstrou em um caso prático. Em 1991, ele foi entrevistado logo após uma controvérsia que envolveu a presença de uma bandeira confederada em um alojamento de Harvard. Ele reconheceu o quão justificadamente ofensivo e inadequado era aquilo, mas acabou por concordar com o então presidente da universidade, para quem a presença da bandeira era lamentável, mas não haveria a imposição da retirada.

No Brasil, Thomas Nagel correria o risco de ser perseguido por algum promotor mais voluntarioso por causa da leitura em voz alta da seguinte passagem:

"A resposta radical à ortodoxia é esmagá-la e atirar seus pedaços na lata de lixo da história. A alternativa liberal não depende da derrota de uma ortodoxia por outra — nem mesmo uma ortodoxia multicultural. O liberalismo deve evitar escolhas forçadas e testes de pureza, substituindo-os por uma certa reticência por trás da qual desacordos potencialmente disruptivos podem prosseguir sem tornar-se públicos e sem exigir que alguém minta. Os desacordos não precisam ser um segredo — eles podem apenas ser mantidos dormentes. Em minha versão, o ideal liberal não se contenta apenas com a liberdade de expressão para fascistas, mas também inclui um ambiente social no qual os fascistas podem guardar, caso assim escolham, seus pensamentos para si."

O contexto dessa passagem, retirada do artigo “Concealment and Exposure”, é a tensão entre a demanda contemporânea por exposição pública e a privacidade pessoal, em especial a privacidade a respeito daquilo que se pensa sobre algo. Nagel publicou o ensaio no fim da década de 1990, talvez antevendo uma época de testes de pureza institucionalizados que exigem a profissão de fé em uma concepção particular de justiça, fazendo da discrição uma atitude automaticamente suspeita. Em todo caso, ao ser conduzido para “prestar esclarecimentos” sobre o trecho, Nagel não diria em seu depoimento que é um libertário.

Por fim, a posição mais comum de Ronald Dworkin a respeito do assunto é bem conhecida:

"Uma democracia justa exige (...) que cada cidadão tenha não apenas um voto, mas também uma voz: uma decisão majoritária não é justa a menos que todos tenham tido a oportunidade equânime de expressar suas atitudes ou opiniões ou medos ou gostos ou suposições ou preconceitos ou ideais não apenas na esperança de influenciar os outros (embora essa esperança tenha importância crucial), mas também para confirmar seu estatuto enquanto agentes responsáveis na ação coletiva, e não como vítimas passivas dela."

Como resume Jeremy Waldron, Dworkin pensa que a ampla liberdade de expressão é condição para a legitimidade política. Já do ponto de vista causal, em particular a respeito da eficácia de legislação que restringe o discurso em prol de outros valores, Dworkin se alinha ao espírito da constituição americana e manifesta ceticismo quanto aos benefícios dessas restrições. Surpresa das surpresas: Dworkin não é um libertário.

É claro que a postura permissiva não é unânime no liberalismo filosófico americano. O próprio Waldron, neozelandês há tempos nos Estados Unidos, pensa que o discurso de ódio tem de ser regulado. Mas se três gigantes do liberalismo de esquerda (sem contar outros, menos conhecidos) comprometem-se com a liberdade de expressão ao estilo americano, a tese de que isso é só tara libertária é, na melhor das hipóteses, demonstração de preguiça. Aqui vale uma pequena digressão antes de prosseguirmos: em geral, os filósofos políticos americanos da velha guarda e seus interlocutores foram “criados” na tradição da filosofia analítica, dentro da qual, até pouco tempo atrás, vigorava o ideal socrático de seguir o argumento aonde ele levasse. Como não sabemos de antemão o ponto de chegada dos argumentos, esse ideal depende de que o ambiente discursivo seja de profunda liberdade. Infelizmente, parte da nova geração de filósofos analíticos incorpora o puritanismo reacionário comum nos meios culturais de hoje, mas isso é outra conversa.

A exclamação 6

Segundo a exclamação 6, não devemos ofender as pessoas. Vários argumentos ruins poderiam ser representados por essa exclamação (embora também alguns bons). Quero comentar apenas um, que é especialmente mau. Uma das características da cultura contemporânea é a valorização da ofensa mesmo quando ela não tem “lastro”. Um sentimento de ofensa não tem lastro quando se baseia na tentativa de encontrar problema onde não há. Um exemplo recente é o melindre causado pelo nome “criado mudo”. Inventou-se toda uma ficção retrospectiva a respeito das origens desse termo e, quando nos demos conta, algumas empresas já haviam decidido proscrever o nome. Uma forma acovardada e bem comum de lidar com isso é a seguinte: “sim, sabemos que a coisa toda tem base em um ataque de histeria na internet, mas se o nome ofende, devemos parar de usá-lo, até porque isso não custa nada.” Admito que esse argumento não é tipicamente usado para defender a censura e o ostracismo de quem fala coisas como “criado mudo”, mas nem por isso ele deixa de incentivar a autocensura. Como responder a ele? A resposta, creio, é a seguinte: a partir do momento em que você cede à ofensa sem lastro, você entra em um estado de heteronomia. Afinal, se você altera seu comportamento por causa de uma ofensa espúria, você não terá à sua disposição qualquer motivo para não ceder a outros caprichos similares. Esse tipo de covardia faz de você um fantoche da sensibilidade alheia. Repare que meu argumento tem a virtude de não implicar que jamais devemos levar em conta a sensibilidade dos outros, caso em que ele provaria demais. Muitos sentimentos de ofensa têm lastro, e a relação de adequação entre esse fato e o sentimento oferece razões para não sairmos ofendendo os outros gratuitamente. Além disso, a heteronomia desaparece, pois a possibilidade de perceber e discutir essa relação está aberta a todos. Respeitar a sensibilidade não é o mesmo que encará-la como soberana.

Meu ponto aqui, vale dizer, é ainda mais modesto do que parece. Não me comprometo com a ideia de que o lastro depende de o termo ter uma origem pejorativa. É possível que um termo inicialmente inocente adquira com o tempo uma conotação inevitavelmente má em seus usos comuns, apagando-se por completo sua conotação original. Em casos assim, o sentimento de ofensa não parece gratuito, dado que o uso social predominante do termo, solidificado por décadas ou séculos, já está dado para além de qualquer reversão no futuro próximo. Uma contrapartida disso é que termos inicialmente pejorativos também podem perder essa carga com o tempo. Curiosamente, porém, há sempre quem viva de tentar sujá-los de novo, recriando assim um problema que não existia mais. A restauração, para suscitar escândalo, da carga negativa de um termo cujo uso limpou é análoga em sua falta de lastro à invenção de impurezas retrospectivas (nos EUA, embora ainda não aqui, a histeria às vezes chega ao apagamento da distinção entre uso e menção para proibir até a menção de um termo). No fim das contas, o que temos com isso é a criação de armadilhas que não existiam e que agora tornarão o uso da linguagem mais difícil, tenso e melindroso (aliás, vejo com fascínio a notável arte de criar ou recuperar ofensas que podem ser usadas contra si mesmo). Desnecessário pontuar que, além do argumento contra a heteronomia, uma razão para resistir a essas imposições é evitar que elas acabem estabilizando-se como tabus linguísticos. Em suma, evitar que o prurido problematizador sem lastro de hoje forneça, do ponto de vista de quem meramente herda esses tabus, lastro no futuro.

A exclamação 7

Para concluir, 7. Tal como formulada, ela parece apenas expressar a verdade óbvia de que a liberdade de expressão tem limite. Afinal, sua negação equivale à afirmação de que a liberdade de expressão é absoluta. Ora, como vimos, nem Mill pensava assim. Honestamente, acho que ninguém, ou ao menos ninguém com juízo, pensa assim. No contexto de seus piores usos, porém, 7 é uma falácia. A falácia é derivar um limite normativo particular da mera constatação de que a liberdade de expressão tem limite. Nas discussões comuns, 7 é usada para defender a censura de quase qualquer coisa. O humorista contou uma piada pesada? Cana, pois a liberdade de expressão tem limite. O cidadão duvidou da lisura do processo eleitoral? Cana, pois a liberdade de expressão tem limite. O que não se percebe é que 7 apenas diz que há limite: a definição de onde traçar esse limite é o aspecto mais importante e difícil. Em uma analogia, se, ao defender que a velocidade máxima em uma via deva ser a de 40 km/h, apenas recorro à ideia de que velocidade tem limite, não digo nada que meu adversário, defensor do limite de 240 km/h, já não diga. A tarefa real é defender especificamente o limite de 40 km/h. Repare que algo parecido acontece com a noção de consequências. Qualquer arbítrio que se cometa contra uma pessoa é justificado pós-fato com a afirmação coringa de que a expressão tem consequências. O trabalho de defender aquela consequência particular é quase sempre evitado.

Não escrevi este ensaio com o propósito de argumentar diretamente contra a censura. Minha intenção foi defender que argumentos populares em seu favor, argumentos cujo conteúdo é definido no calor dos debates das redes sociais, são insuficientes para justificá-la. Mesmo assim, fenômenos como a petição de princípio a respeito do Princípio do Dano e a deriva conceitual (alguém hoje saberia dizer o que o conceito de ameaça ao estado democrático de direito exclui?), combinados com a rejeição da assimetria apontada por Freiman, sugerem que é uma boa ideia colocar um freio no ânimo censor e entender que, apesar dos custos, liberdade é liberdade de falar. Quem sabe os americanos não têm alguma razão?

Aluízio Couto é professor temporário do ensino médio público em Minas Gerais, tradutor e doutor em Filosofia. Seu email é aluizio.couto2112@gmail.com.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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