A política do lockdown expropriou a dignidade da pessoa humana. Ela limitou direitos sem subtrair os encargos que a condição cidadã requer dos indivíduos.| Foto: LineuFilho
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O grande desafio que a pandemia de Covid-19 trouxe à baila (no mundo contemporâneo) foi o de tornar possível pensar a conciliação das variáveis “liberdade” e “vida” para esse contexto. Figura-se, no horizonte da atualidade, uma tendência política (cada vez mais crescente) de polarização desses valores (indissociáveis) que têm seu fundamento axiológico na tradição moral do judeu-cristianismo. Afinal, não se pode ignorar que a “vida sem liberdade” se caracteriza como uma espécie de “vida sem dignidade”. Essa crença tem sua âncora teológica enraizada na narrativa da criação do ser humano (Adam) descrita no livro de Gênesis (Bereshit), quando se diz: “Então, o Senhor modelou o ser humano do pó da terra, feito argila, e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). Esta é uma citação clássica que preconiza a “mobilidade ontológica” (liberdade) como uma característica constitutiva do “ente humano que vive” (alma vivente), contrastando, assim, com a crença que “mortos não podem se movimentar”. Não é à toa que a sepultura, na antropologia do Antigo Testamento, é compreendida como “lugar de silêncio” no qual a mobilidade humana deixa de existir.

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O primeiro sintoma de vida que o ser humano apresenta é o movimento no qual se aporta seu “instinto de sobrevivência”. A liberdade, desde os primórdios dos tempos, foi compreendida como condição determinante para a preservação da própria vitalidade humana. Viver não é existir, mas se movimentar na vida. Sem essa mobilidade ontológica (liberdade), o risco de se viver sem dignidade cresce substancialmente. Ao se tornar “alma vivente”, o ser humano se “mobiliza” (ou seja, “faz uso de sua liberdade”) para evitar que a vida seja sucumbida pelas ameaças que operam no espaço em que ele existe. Neste sentido, a crença de que a finalidade da vida é produzir mobilidade do ser humano no mundo se torna um “argumento incontestável”. “Liberdade” e “vida” são variáveis que aparecem numa relação de codependência na advertência feita por Deus a Adão no texto que trata sobre o tema da “árvore do fruto proibido”. Ela foi figurada lá como uma espécie de condição indispensável de defesa ou manutenção da própria vida. A liberdade, portanto, deve ser usada para proteger a vida humana contra ameaças potenciais de morte que circulam no mesmo espaço que ela existe. Sem a liberdade, o “ser humano” não teria seu “instinto de sobrevivência”, e sucumbiria como tal.

Esse alinhamento temático criado pela tradição judaico-cristã foi preconizado, propositalmente, para evitar que uma dissociação orgânica das variáveis “vida” e “liberdade” acontecesse. O que se quer sublinhar com a expressão “fôlego da vida” é a garantia operacional da “mobilidade” da pessoa humana: a vida humana foi dada para se viver (princípio da liberdade). É por isso que o ser humano se torna “alma vivente” (נפש חיה), ou uma forma de vida que se move no mundo em uma busca permanente pela sobrevivência. Assim, a liberdade está para a vida tal como o oxigênio está para o pulmão. Na falta operacional de um, o outro entra em colapso e deixa de existir. Não há uma exceção a essa regra. Na tradição mencionada acima, o trinômio “ser humano, vida e liberdade” é defendido como valor fundante de uma antropologia da sobrevivência humana. O mundo da vida deve ser compreendido como espaço em que esse tripé precisa ser postulado como direito sagrado do ser humano. E nada serve como justificativa para se relativizar a sacralidade dessa crença elementar.

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Logo após o evento da queda original, o ser humano foi retirado do Éden, mas sem perder o acesso garantido ao direto à sobrevivência. E como isso aconteceu? Assegurando ao ser humano, representado pelo casal Adão e Eva, o direito a usufruir de sua liberdade. Aqui novamente o binômio “vida e liberdade” se consubstancia organicamente. A natureza inviolável desse direito à liberdade figura-se na advertência dada pelo Senhor Deus (Yehwâh Elohim) a Adão: “Do suor do teu trabalho comerás o teu pão” (vida e trabalho – sobrevivência). Nesta proposição se chancela a garantia da liberdade como direito inalienável do ente humano tornado alma vivente. E, por meio dela, se assegura o acesso ao sagrado direito à vida. Essa crença judaica foi preconizada pela cultura da liberdade moral no mundo ocidental, não para valorizar o trabalho produtivo em si, mas para deixar em relevo a unidade orgânica do binômio “liberdade e vida” como direito fundamental da pessoa humana. E, por conta dessa compreensão, o trabalho se tornou um valor social associado à dignidade humana para a preservação da saúde moral/psíquica da pessoa humana.

Essa crença universal e atemporal parece ter sido subtraída subitamente de brasileiros, cidadãos com direitos assegurados constitucionalmente, no atual contexto da pandemia de Covid-19. Houve uma dissociação ilegal e imoral das variáveis “vida”, “liberdade” e “trabalho humano”. O pressuposto usado tanto por parte de autoridades publicadas constituídas pelo voto democrático quanto por um Judiciário que deu suporte ativista a esses subversores da ordem legal é que o interesse do coletivo (o controle da pandemia) deve se sobrepor ao do indivíduo (direito ao trabalho e à liberdade). Os valores fundamentais da pessoa humana, consagrados pela Constituição brasileira, foram retirados ilegalmente do cidadão com o falso pretexto de que o alto potencial mortal da pandemia teria invertido essa lógica de prioridades. Com o advento de uma outra ordem (o “novo normal”), os direitos fundamentais do indivíduo/cidadão deveriam ser, para isso, suspensos.

Com a nova política de criminalização da liberdade e do trabalho, a hierarquia de valores se inverte. Emergiu, portanto, uma pergunta inquietante que esteve presente na consciência de quem se sentiu desrespeitado por essa nova ordem de coisas, a saber: Que tipo de vida estão pretendendo impor aos indivíduos nesse novo estado de coisas, no qual o fenômeno da Covid-19 se tornou argumento para legitimar toda ação cometida ilegal e imoralmente com os direitos fundamentais da pessoa humana? Esqueceram que o direito ao trabalho é a única garantia que cidadãos têm para assegurar uma vida com dignidade, com liberdade e com saúde (psicomoral). Uma vida sem liberdade é uma vida sob a opressão que produz a depressão e o desencanto pela vida. Uma vida sem trabalho é uma vida esmolante e sem dignidade. Uma forma de vida privada da liberdade e do trabalho se torna um tipo de ameaça nociva à própria natureza psicomoral da pessoa humana (autoestima). Viver com as garantias fundamentais de cidadania suspensas produz um tipo de experiência subjetiva de autodepreciação e vergonha que só se tem em regimes escravagistas de opressão e ditatoriais por meio dos quais a pessoa humana é brutalmente tratada como “coisa”, e sua dignidade como uma ameaça potencial que precisa ser destituída.

Esse escândalo moral que ocorreu no mundo e em partes da sociedade brasileira foi provocado por agentes públicos escolhidos pelo voto popular. Isso é um paradoxo. O direito à vida humana foi antagonizado ao direito à liberdade humana. Mais grave ainda: a liberdade se transformou num antivalor que ameaça a própria a vida humana. É assim que se estruturou uma falsa crença coletiva que produziu uma “esquizofrenização coletiva” da sociedade como um todo. E parte de uma mídia psicopática foi responsável pela formação dessa psicopatologia coletiva: uma confusão generalizada. A sociedade alicerçada nos princípios fundantes de uma democracia constitucional surtou pelo excesso de desordem criada pela nova cultura midiática da desinformação. Esta não mais reconheceu a liberdade como fundamento moral por meio do qual deveria ser edificada a saúde de uma organização social coletiva. Vale ressaltar que, sem a liberdade, a pulsão pela vida arrefeceria e uma macrossocialização do capital da depressão aconteceria inevitavelmente. Afinal, o que é depressão senão a depreciação radical de todas as possibilidades de reorizontalização das boas expectativas de uma vida com saúde psicomoral dos indivíduos?

O Brasil ainda está doente. A Covid-19 matou milhares de pessoas, infelizmente, mas ainda está adoecendo milhões de brasileiros que poderão não se recuperar mais dos efeitos subjetivos oriundos dela. Quando a maioria dos cidadãos perde a dignidade, a ansiedade da vacuidade – ou a agonia – se constituirá o destino obrigatório para todos. A supressão coletiva da liberdade marcou e continua marcando o advento da zumbificação da pessoa humana nesse país. Um vasto contingente social está vivendo como se morto estivesse. O modelo de vida que está sendo apresentado é próprio de um “mundo embotado” em dimensões macrossociais. Quando se dissociou a vida da liberdade, o destino que se traçou para a nação, em sua grande maioria, foi o da “esquizofrenização da vida”, a dissociação operacional de valores indissociáveis. E, nesta configuração social de existência, a política do “fique em casa” se tornou útil para assegurar a uma grande maioria da população brasileira que o “distanciamento afetivo” se tornaria um evento que se abateria sobre ela.

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Ao instituir a política do “fechar tudo” (lockdown), governadores e prefeitos deste país, afiançados pelo STF, estariam retirando o “fôlego de vida”, a mobilidade operacional, de uma maioria da população brasileira que estaria sendo asfixiada pela relativização do seu direito de ir e vir, e de trabalhar. Vale reafirmar aqui que o trabalho livre é indicativo da efetividade plena da vitalidade moral da liberdade. Ele endossa a natureza livre que é constitutiva do ser humano: ser é movimentar-se na vida. Por isso é que a liberdade precisa ser definida como “mobilidade ontológica ou moral”. Trabalhar livremente é obedecer o imperativo condicionante da própria natureza da pessoa humana que é portadora de necessidades reais e aptidões criativas. A restrição ao trabalho imposta ao ser humano sempre foi entendida como um ato de castração a sua liberdade criativa e producente. Um corpo sadio requer mobilidade física, do contrário ele adoece e morre. Assim também da pessoa criativa é demandada uma ação produtiva realizada pela vontade livre; do contrário, sua alma adoece e esvanece em ansiedade patológica e depressão.

Nesse sentido, a liberdade é uma condição subjetiva na qual se materializa a objetividade do trabalho por meio do qual a pessoa humana faz escolhas, exercita suas aptidões, assume responsabilidades e cumpre seus deveres. Por isso mesmo o trabalho deve ser entendido como um “direito inalienável”, assegurado constitucionalmente. A política do lockdown contrariou essa lógica intrínseca da natureza humana à medida que cerceou esse direito fundamental da condição cidadã. A cidadania é um status civilizatório que gera reconhecimento social, encargos monetários e responsabilidades fiscais. A civilização trouxe um cabedal de facilidades que ofereceu o bem estar para o cidadão, mas com um custo monetário. A civilização possibilitou acesso a água tratada, energia, educação, saúde de qualidade, entretenimento, consumo de bens e serviços que facilitam a vida cotidiana etc. Tudo isso, porém, a um custo que está implicado no cabedal dos deveres atrelados à condição cidadã. Assim, viver como cidadão na civilização implica assumir deveres para conquistar direitos. E, sem o trabalho, essa balança da condição social da cidadania se desequilibra.

Repulsa popular ficou ainda maior quando quem deveria proteger seus direitos como cidadãos, a Justiça brasileira, acabou virando as costas pra todos eles, abandonando-os num cenário apocalíptico de opressão.

Infelizmente, a política do lockdown expropriou a dignidade da pessoa humana. Ela limitou direitos sem subtrair os encargos que a condição cidadã requer dos indivíduos. Por esse motivo, chefes de família choraram diante do caos que a lógica anticivilizatória da política do lockdown produziu no mundo e aqui no Brasil. Sim! Ela retirou direitos fundamentais da condição cidadã, o direito ao trabalho e à liberdade econômica, ao mesmo tempo que produziu dois tipos de fomes que deixariam de ser saciadas: a fome de pão e a fome de dignidade. A condição provedora que a civilização do trabalho livre criou requer que cidadãos assumam responsabilidade para se obter garantias para viabilizar o processo da vida humana. No contexto do lockdown esta relação deixou de existir harmonicamente. E, sem liberdade para realizar o trabalho digno, cidadãos de bem foram penalizados por não terem como pagar o custo social que a condição humana na civilização lhes cobra de modo implacável. Daí a aflição de uma vasta parcela da população ser demonstrada em forma de protestos carregados de ira e indignação legítima.

A repulsa popular ficou ainda maior quando quem deveria proteger seus direitos como cidadãos, a Justiça brasileira, acabou virando as costas pra todos eles, abandonando-os num cenário apocalíptico de opressão que passou a onerar as condições de vida sem aliviar o peso monetário que estava atrelado diretamente ao status de uma cidadania plena. Esse foi o crime que a política de lockdown praticou acintosamente contra os cidadãos mais frágeis, pessoas de bem que queriam apenas trabalhar porque precisavam se manter vivos no mundo da vida. Será que é difícil as autoridades públicas terem clareza desse entendimento? Até quando se fará vista grossa a esse crime praticado pelas próprias autoridades públicas em geral contra os direitos fundamentais dos cidadãos? Uma coisa nos parece certa: a política do lockdown subverteu a ordem democrática e cometeu crime porque ela inverteu os valores fundantes de uma civilização que até então havia respeitado a natureza indissociável do tripé “vida, liberdade e trabalho”. Por isso vale ressalvar a máxima: “tudo pela vida, e nada sem a liberdade”.

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Anderson Clayton Pires é doutor em Sociologia e em Teologia/Hermenêutica, pastor luterano e professor acadêmico.