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julgamento
| Foto: Arek Socha/Pixabay

Durante toda a vigência da Lei 8.666/93, não foram raros os casos em que a administração licitante excluiu do certame empresas que se encontrassem em recuperação judicial em razão da leitura equivocada do artigo 31, II, da Lei 8.666/93, em que se exige como requisito de habilitação econômico-financeira a apresentação de “certidão negativa de falência ou concordata”.

Ocorre que, com o advento da Lei 11.101/2005, eliminou-se o instituto da concordata, sendo criado o da recuperação judicial. Pois bem, é difícil imaginar que algum profissional da área possa confundir esses institutos e entender que recuperação judicial é apenas uma nova roupagem ao instituto da concordata, devendo-se, da mesma forma, excluir o licitante que se encontre no processo de recuperação. Isso pode ser explicado, talvez, por a Lei de Licitações ser anterior à de Recuperações Judiciais e Falências, e não havia, até então, uma atualização legislativa sobre esse ponto em específico. Assim, alguns defendiam a interpretação do inciso II do artigo 31 no sentido de que, onde se lia “concordata”, deveria ser entendido “recuperação judicial”.

Pois bem, a tendência é que, com a entrada em vigência da nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21), a dúvida quanto à impossibilidade de se afastar de pronto empresa em recuperação judicial seja eliminada. Isso porque a lei passa, em seu artigo 69, II, para fins de habilitação econômico-financeira, a exigir tão somente a “certidão negativa de feitos sobre falência”. Portanto, não há dúvidas de que o fato de a empresa se encontrar em recuperação judicial não a impede de participar de licitação, pelo menos formalmente.

No entanto, na prática é muito difícil que uma empresa em recuperação possa concorrer e vencer um processo licitatório. Ainda que tal empresa consiga demonstrar o atingimento dos índices econômicos exigidos em edital, como previsto no artigo 69 da nova Lei de Licitações, outro obstáculo quase intransponível é a apresentação de garantias previstas no artigo 56 da Lei 8.666/93 e, mais recentemente, no artigo 96 da Lei 14.133/21.

De acordo com os incisos do § 1.º dos referidos artigos, caberá ao contratado optar por três modalidades de garantia: 1. caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil, e avaliados por seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Economia; 2. seguro-garantia; e 3. fiança bancária. Não é difícil perceber que uma empresa em recuperação judicial não poderá dispor de dinheiro para caucionar um contrato, pela própria situação de precariedade financeira que a levou a um processo de recuperação.

Ademais, essa é a forma de garantia mais onerosa para qualquer empresa em qualquer situação, visto que poucas têm condições de imobilizar um razoável montante de recursos financeiros que poderiam ser investidos em sua atividade empresarial, especialmente para pagamento de despesas essenciais. Caução em títulos da dívida pública é algo bastante remoto, pois se trata de um instituto pouquíssimo compreendido, inclusive pelas equipes das administrações licitantes. E são poucas as empresas que detêm esses títulos e que atendam às especificidades legais para que sirvam de garantia. De outra ponta, seguradoras e instituições financeiras, como regra, não assumem o risco de fornecer o serviço de seguro-garantia e de fiança bancária, respectivamente, a empresas em recuperação judicial.

Em razão disso, faz-se necessária a criação e utilização de ferramentas que incentivem tais instituições a prestarem serviço de garantia e de crédito às empresas em estado recuperacional. Tendo isso como objetivo, podemos analisar a Lei 14.112/2020, que altera profundamente a Lei de Recuperações e Falências (Lei 11.101/2005), e traz uma seção inteira (IV-A) com dispositivos que intencionam encorajar o financiamento da empresa em recuperação e do eventual grupo econômico a que aquela faça parte.

Segundo o artigo 69-A, permite-se que a empresa em recuperação aliene fiduciariamente bens e direitos seus ou de terceiros para financiar suas atividades e despesas de reestruturação. Para tanto, caberá a autorização do juízo universal da recuperação depois de ouvido o Comitê de Credores para a celebração do contrato de financiamento.

A fim de conceder efetividade na garantia de que o financiador receberá seus créditos, o artigo 84, I-B, concede a natureza extraconcursal ao valor efetivamente entregue à recuperanda pelo financiador. Portanto, em eventual convolação da recuperação judicial em falência, o financiador terá preferência de pagamento, não se sujeitando a qualquer lista de credores.

Na verdade, em nosso entender, o mais efetivo seria conceder a imediata consolidação da propriedade em favor do credor/financiador em caso de inadimplemento pela recuperanda, conforme a própria natureza do instituto de garantia. Do contrário, da análise literal da lei, a mera possibilidade de que o financiador terá de aguardar os trâmites processuais para a liquidação do ativo no âmbito da recuperação judicial, ainda que se tratando de crédito extraconcursal, afastará qualquer “apetite” de grandes instituições bancárias a fornecer créditos para essas empresas em recuperação judicial.

Assim, a nosso ver, por meio da alienação fiduciária de bem ou direito, e garantindo-se que esta será consolidada em favor do credor/financiador, a empresa em recuperação poderá ter acesso também ao serviço de fiança bancária prestado por instituições financeiras, propiciando sua participação em licitações e consequente contratação. Da mesma forma, se se permitisse que a empresa em recuperação oferecesse um bem em garantia perante seguradoras, estas poderiam avaliar a conveniência em prestar o serviço do seguro-garantia, também para participação em licitações.

Mas, para que isso aconteça, em nosso entender, a alienação fiduciária de bem ou direito da empresa em recuperação deve seguir os trâmites desse mercado, não devendo sofrer qualquer óbice ou postergação da consolidação do patrimônio em favor do credor/financiador em razão do processo de recuperação judicial. Vale dizer, qualquer sujeição do crédito a uma lista de credores, ainda que tendo natureza extraconcursal, afastará qualquer intenção de bancos e seguradoras em fazer negócios com empresas em recuperação.

Adriano Biancolini é advogado especializado em Direito Público e Empresarial.

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