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Por votação simbólica, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou o texto final do PLS nº. 688/ 2007, acrescentando o parágrafo 6º ao artigo 11 da Lei nº 9.504, de 1997, com a ressalva de que o registro de candidatura será concedido aos candidatos que comprovem idoneidade moral e reputação ilibada.

O Senado sustenta a aprovação com o argumento de que muitos candidatos respondem a processos mas nunca foram condenados em definitivo. Mesmo não tendo reputação ilibada, permanecem candidatos, manchando as eleições com a mácula da imoralidade.

Tudo tem sido feito para assegurar a moralidade. E a qualquer preço.

Calharia muito bem ao Senado, talvez com maior densidade e grau de convencimento, se afirmasse à opinião pública que medidas têm sido adotadas para assegurar "a ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando deste modo os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria." (Primeira consideranda do Ato Institucional nº. 05, de 13 de dezembro de 1968)

O discurso da moralidade que buscou justificar – e não justificou – o golpe militar de 1º de abril de 1964 tinha exatamente o mesmo sentido dos pretextos que embasam as novas tentativas de sufocar a democracia pelo veto à elegibilidade.

É certo que não se defende a imoralidade das eleições, como pretenderia fazer supor o argumento contrário e superficial, apoiado no discurso fácil da moralidade. Mas é igualmente certo que o crivo jurídico da moralidade nas eleições somente se reveste de legitimidade se obedecer aos parâmetros constitucionais, sem contar, a par dessa questão formal, que este tipo de legislação parte da premissa de que as escolhas populares nas urnas não têm sido satisfatórias, relegando a sociedade civil a um padrão de incapacidade crônica na definição de seus governantes e de seus destinos. Já é hora de se confiar um pouco mais na capacidade de escolha do brasileiro.

A história registra o artigo 4º do AI-5 que instituiu a suspensão dos direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 (anos), permitindo a cassação de mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Evidentemente contrária ao princípio democrático, a medida foi à época criticada pelos mais eminentes juristas, inclusive Evandro Lins e Silva, destituído pelo governo militar do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Houve crítica e resistência.

A aprovação da PLS pelo Senado também padece de fragorosa inconstitucionalidade, pois institui proibição de elegibilidade (hipótese de inelegibilidade) por acréscimo a lei ordinária, quando a Constituição, no artigo 14, § 9º, restringe a criação de casos de inelegibilidade à disciplina do quórum qualificado por lei complementar.

A aprovação não foi criticada. Pelo contrário, recebeu loas e aplausos. A comparação das manobras golpistas de 1964 com as táticas ditas democráticas conduz à conclusão de que não é a democracia brasileira que se está aperfeiçoando; os golpes e as tentativas de sufocá-la é que ficam cada vez mais requintados.

Em 1964 tomou-se o poder constituído rasgando-se a Constituição. "Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais." (Consideranda do AI 1/64)

Agora as táticas buscam justificativa dentro a própria Constituição, começando pela afirmação de que o princípio da presunção de inocência somente se aplica ao processo penal. Nos demais portanto, tais como nos de improbidade administrativa, o réu já poderá ser punido antecipadamente com a vedação de sua inelegibilidade, caso o Projeto de Lei seja aprovado também pela Câmara Federal.

Olvida-se que a única razão de ser do processo como instrumento sustentado por garantias para a solução de conflitos de interesses é a obtenção de uma decisão final que somente se consolidará de modo imutável (coisa julgada), após esgotadas todas as vias da estrutura judiciária em que esta discussão ainda é possível. Não fosse assim, a decisão unilateral, tomada de pronto por uma única autoridade que jamais se equivocaria, seria suficiente, além de ser mais rápida e efetiva. Voltaria o tempo das dinastias medievais católicas em que, por dogma irrevogável, se aceitava que o rei jamais erra; o súdito é que não tem capacidade suficiente para entender a grandeza da decisão do soberano.

A par da inconstitucionalidade formal, o conteúdo da PLS chama a atenção pela vagueza e abstração. Quando considera que devem ser inelegíveis os que não comprovam "idoneidade moral e reputação ilibada."

No mesmo sentido, o artigo 10 do AI-1, publicado no DOU em 9 de abril de 1964 previa que "no interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos."

A imprecisão da previsão legal de vedação de conduta abre espaço para a insegurança jurídica, pois deixa ao alvedrio do aplicador da lei amplo espaço para que transite decidindo se quer ou não tornar o réu inelegível. A vontade pessoal do julgador ganha então dimensão maior do que os direitos individuais podem permitir.

O discurso de preservação da moralidade já autorizou e continua autorizando golpes de Estado. O de 1964 ao arrepio da Constituição. Os de hoje, dentro da Constituição. O golpe agora é institucional, mais discreto e arriscado para a democracia do que o anterior.

Fernando Gustavo Knoerr é mestre e doutor em Direito do Estado pela UFPR. É coordenador-geral do curso de Direito da Opet.

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