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Os Oscars que eventualmente receberá neste domingo deverão alterar a sua performance comercial, a sobrevida como produto. O filme de Steven Spielberg já é um monumento inquestionável que se acrescenta aos 7 mil livros, às gigantescas imagens esculpidas em mármore e pedra nos santuários políticos, aos clássicos cinematográficos de Griffith e Ford, e à mitologia em torno deste Quixote de cartola – idealista lúcido, intenso, eloquente, convictamente democrata que foi o 16.º presidente dos Estados Unidos.

Antes mesmo da premiação, a saga sobre Abraham Lincoln já deixou marcas indeléveis na cena cultural brasileira: seus 150 minutos carregados de solenidade já foram assistidos por cerca de 700 mil espectadores em pouco menos de um mês. Não obstante os diálogos longos, prosa algo rebuscada (grande parte dos personagens são políticos exercitando discursos políticos), trama complicada, temática distante no tempo e no espaço, o silêncio das plateias é impressionante (este articulista o assistiu no Rio e em São Paulo). Pipocas mastigadas suavemente, celulares quietos, por milagre ninguém quer compulsar os últimos tweets e mensagens.

Lincoln está sendo assistido no Brasil com reverência em grande parte estimulada pelo violento contraste entre a arte que corre pela telona e a conjuntura que nos envolve: o lançamento do filme coincidiu com os preparativos para a eleição da dupla de tropeiros que vão comandar o Congresso brasileiro.

Como o roteirista Tony Kuschner e o diretor Spielberg não omitiram a descarada compra de votos para garantir a aprovação da 13.ª emenda à Constituição que acabaria definitivamente com a escravidão nos EUA, o espectador-cidadão vive o filme em dois níveis: o ideal (representado pelo relato histórico) e o real (o seu conhecimento da vida política nacional).

O presidente Lincoln tinha a clara percepção de que a emenda precisaria ser aprovada rapidamente e a servidão humana, erradicada do país antes que a Guerra Civil acabasse. Caso contrário a escravidão seria mantida nos estados do Sul e novas matanças ainda mais sangrentas se repetiriam. Os congressistas céticos e recalcitrantes precisavam ser comprados, pressionados ou persuadidos de qualquer maneira. Mesmo os emissários sulistas que vinham para render-se precisavam ser impedidos de chegar a Washington antes de consumada a votação. A abolição da escravidão precisava preceder a capitulação e a assinatura da paz.

O espectador acompanha siderado o velho dilema filosófico sobre os fins que justificam os meios, mas não vacila: esse vale-tudo é justo, acabará com a escravidão e encerrará a Secessão definitivamente. O assassinato de Lincoln (mostrado indiretamente) dá à tragédia a função de confirmar a justeza de sua estratégia e coroar a sua sabedoria.

Lincoln é o cinema como arte e como educação política. Exige do espectador o que tem de melhor; em retribuição, oferece-lhe a oportunidade de reencontrar-se com o que a política tem de melhor: o idealismo.

Alberto Dines é jornalista.

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